quarta-feira, dezembro 28, 2005


pai,
esses anjos tão lúcidos,
deixa-os aqui.

esses anjos tão limpos,
deixa-os aqui.

esses anjos mudos, esses anjos tenros, esses anjos que velam,
esses anjos que guardam e protegem,
deixa-os aqui.

pai,
deixa-os aqui, os anjos
deixa-os aqui, comigo

pois lá fora as auroras já sonharam
e eu preciso de um pouco de paz.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

DEZEMBRO EM CINCO PEQUENAS VARIAÇÕES

I RENASCER

acordei esquecido, hoje é um daqueles dias do décimo segundo mês nos quais o que menos interessa é a ordem correta dos talheres ou o ar quente que o ventilador devolve no meu rosto inexpressivo de homem inexpressivo e absolutista que não se permite chorar e que goza gozos invertidos na palma da mão direita. basta uma olhadela pra constatar que lá fora as pessoas exibem orgulhosamente o repertório de dezembro – felicitações, paz, saúde, harmonia e sorrisos. muitos sorrisos. sorrisos por todos os lugares até mesmo nas crianças escondidas nas calçadas mortas de fome de medo de indiferença de desamor e de razão [a razão nos mata a todos, mais cedo ou mais tarde]


II BLASFÊMIA

as pessoas são amáveis e gentis umas com as outras quando chega dezembro. quando dezembro chega as pessoas realmente são boas umas com as outras – essa bondade cristã que coloca as mãos em nosso pescoço e diz
seja feliz assim mesmo. essa felicidade imposta. essa bondade tingida de branco que repete a mesma estúpida canção a manter-nos a infância em estado vegetativo - ela não levantará desse leito, vocês não conseguem ver? maldita seja a bondade dessas pessoas boas e asquerosamente bem-nutridas. maldita seja a bondade que persiste na mentira de que tudo é possível de que tudo é tão bonito de que somos todos irmãos e que somos todos filhos de um deus amável onipresente onisciente onipotente deus da benevolência e do perdão – esse deus não acredita em mim esse deus não acredita em ti esse deus não acredita em nós esse deus se diverte enquanto dormimos enquanto nos fudemos de todo enquanto mendigamos por amor enquanto apodrecemos nos leitos das nossas mortes ainda vivas e inválidas.


III ESCÁRNIO

acordei esquecido e pouco importa todos os passos que dei todas as frases que pintei todas as amarguras que digeri e todos os anjos que vomitei [no céu da minha demência os anjos ainda sabem sorrir, meus anjos retirantes que desenham chuva] hoje é mais um daqueles dias intermináveis dum dezembro que sempre sempre sempre é o mesmo dezembro [um dezembro embrulhado pra presente e que faz da gente um sopro um suspiro um risco de giz num quadro negro numa sala de aula que só ensina rancor perdas e fingimento]


IV ALMA

felicidade! desgraça de felicidade natalina feita de isopor e de tinta fresca prestes a ser manchada. dezembro é um mês mentiroso feito da mentira mais açucarada, feito da mentira que borrifa litros e litros duma fraternidade esclerosada mantida viva às custas de esmolas e esperança. dezembro é um mês feito de cinzas – as bocas que devoram dezembro são banguelas, os cus que defecam dezembro são desalmados, os olhos que refletem dezembro são opacos, as mãos que velam dezembro são trêmulas e vivem suadas. dezembro é só mais um mês de trinta e um dias. não há escape da solidão não há acalento nem porcaria alguma. dezembro! dezembro! dezembro! dezembro! maldito seja todo dezembro porque minha mãe não está mais aqui e minha tia e meu avô e minha avó também e meus brinquedos também e as estrelas-cadentes e os vaga-lumes e os abraços que eram de verdade e a neve que era de mentira e a paz que me fazia dormir tudo isso nunca mais, nunca mais, nunca mais estará aqui [eu tenho fotos, fotos dos que amo, algumas fotos, mas fotos são arremedos, fotos são instantes perdidos que ficam na gente só pra aumentar aquilo que nos corrói]

V COMUNHÃO

trinta e um dias inscritos nos músculos. trinta e um dias e mais alguns segundos quem sabe minutos pra que tudo recomece. trinta e um dias – dias que continuarão aqui quando tudo tiver partido, quando eu tiver partido e as cidades continuarem iluminadas e as pessoas, outras pessoas, prosseguirem na crença de serem felizes de fato. dezembro é um mês curto quando amanhece e infinito quando chega a noite. dezembro é um mês que nos suga a alma e escarra a carne. dezembro é um mês torto, um mês enrugado. dezembro é um mês sem cor em meio a tantas cores. dezembro é um mês cirúrgico [o corte preciso a expor toda a dor que precisa ser anestesiada] dezembro é um mês que nos oferece dádivas sem querer nada em troca. dezembro é um mês hipócrita. dezembro é um mês feliz e triste, diferente, bem diferente da felicidade e da tristeza dos demais.

terça-feira, dezembro 20, 2005

deus não é gentil nem bondoso. deus esquece e confunde. deus não fala em voz alta. deus sua nas axilas. deus é incapaz de desnudar seus pecados diante de nós - deus peca feito um bicho qualquer.

deus afaga meus cabelos quando quer atenção. deus esmigalha meus ossos quando se curva às minhas virtudes. deus é irredutível. deus é vulgar e bonachão – deus se faz de surdo sempre que oramos, e sorri.

deus embaralha destinos sobre a cama. deus nos quer de joelhos. deus espera que apodreçamos em febril devoção. deus não foi batizado. deus não foi registrado – deus brinca de ser o nosso redentor.

deus é um rosto desfigurado pelo tempo. deus é uma frase mal dita em meio a tanto barulho. deus é intranqüilo. deus é uma pena prescrita. deus é um lamento reciclado – deus lança a sorte e vicia os dados.

deus é um rascunho. deus é auto-suficiente. deus é arrogante. deus é esnobe. deus é minha falsa medida. deus é abobalhado. deus é detestável e pueril – deus nunca foi pai e não soube ser mãe.

deus é meu testemunho mentiroso. deus é aquilo que me escapa nos sonhos. deus é o que me falta quando a dor chega. deus sobrevive às velas e aos túmulos – deus adultera as marcas azuis da solidão.

deus apaga estrelas equilibrado sobre pernas-de-pau. deus finge clemência quando quer reverências. deus é cínico e mal-humorado. deus é frágil. deus é mal-alimentado – deus tem medo daquilo que não sabe.

deus esconde a idade. deus disfarça as fraquezas. deus tem mãos trêmulas. deus não sabe dormir em silêncio. deus acorda assustado. deus cheira mal e rói as unhas – deus coleciona moedas enferrujadas.

deus me desconhece. deus me entristece. deus me faz a alma pesada e sorrateira. deus equaciona meus destemperos e corrompe meus vícios. deus obscurece minhas auroras – deus é meu fingimento e meu desamor.

deus sabe onde eu moro. deus me cumprimenta pelas ruas. deus estipula valores e calcula seus lucros. deus obturou todos os dentes. deus não planta girassóis – deus um dia acordou e gostou do que viu.
deus escreve comigo suas linhas tortas. deus guarda mordaças no fundo dos bolsos. deus confunde as cores e pinta aquarelas. deus é destro. deus é covarde e ardiloso – deus sou eu na minha lucidez.

domingo, dezembro 18, 2005


é preciso fixar-lhe o centro, atar-lhe os nervos, dar-lhe um nó na garganta do grito. é preciso mesmo velar os espelhos que tombam ao tempo, numa procissão de corpos encharcados pela apatia do mesmo, sempre o mesmo, dia após dia. é preciso que as portas sejam suficientemente pesadas para não haver escape – nem da claridade do sol, nem da intensidade da lua. é preciso deixar o menino sozinho no seu canto. longe de tudo. longe de deus e dos anjos. longe das sombras que crescem debaixo da pele e das feridas que assolam a alma. é preciso deixar o menino sozinho. longe, bem longe da dor.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

aos trilhos e trens, sobrevivemos nós, atravessando nossas trilhas de estreitezas e alargamentos - trilhas escritas na carne, estreitas; trilhas nodulares da fuga, largas; trilhas descabidas da paixão, estreitas; trilhas lineares da razão, largas [a régua das medidas está guardada numa caixa de sonhos que segue viagem entre os vagões] sim, há lapsos de memória nos lembrando quem somos – do pó que viemos quero a mentira vestida de deus. há sopros de restos de trapos de ontem incrustados nos sorrisos que sorrimos diante do que hoje nos parece lucidez – quero o murmúrio das chuvas em plena praça saudando meus pecados. aos trilhos e destrilhamentos dessas trilhas da vida da gente, celebro eu uma canção atonal de mim mesmo – manchada de sêmen, de sangue, de vinho e de dor.

segunda-feira, dezembro 12, 2005


saiam tirem levem essas vozes daqui! eles estão todos mortos eles estão todos tortos eles não voltam mais eles não descansam em paz eles não pertencem a esse lugar eles ficaram trancados naquela casa naquela sala naqueles corredores naquele tempo que nos fez tão felizes e depois foi embora sem dizer até outro dia. malditos sejam! malditos são! malditos, mil vezes malditos e suas vozes que só a mim dizem como se eu fosse o único passível de saber desses cânticos que jazem no lado de lá da noite [visível e afável, mentiroso e perverso, adoecido e eterno]
por que me cercam de paredes se as paredes não sabem sonhar? por que me banham dessa água se eu já deságuo estrelas e vaga-lumes e papoulas? por que me queimam a carne se eu sou das cinzas o futuro?
eu sou meu deus e sou um deus de merda eu sou um deus disfarçado eu sou um deus invertebrado eu sou um deus angustiado eu sou um deus que esqueceu que era espantalho e ousou sorrir [rasguei páginas em branco e tranquei as portas do meu paraíso – sou meu próprio juiz e sentencio eu mesmo a dor das minhas torturas vorazes]
eu sei dos segredos paridos eu sei dos presságios malditos e sei dos bem-aventurados as mentiras que nos velam os sonhos. eu sempre soube antes mesmo da última ceia ter sido servida antes mesmo do último trago ter sido roubado e do último gole ter sido bebido como quem bebe da própria alma a salvação – para sobreviver era necessário depositar a minha sanidade numa instituição qualquer desde que pintada de branco e sem cheiro de nuvens e vestir minhas tardes chuvosas e mastigar minhas hóstias de medo e me ver livre de tudo me ver livre de tudo me ver livre de tudo e de tudo extrair um fim que coubesse em si mesmo que aparasse todas as arestas e pontuasse todos os mínimos detalhes do que eu seria enfim. e eu aceitei e aceito eu aceito sim tudo o que me for ditado tudo aquilo que for imposto tudo aquilo que me for enfiado goela abaixo. eu me subestimo eu imploro e eu rastejo e eu lambo os teus pés pra me ver livre dessas vozes. eu quero abortar meu batismo eu quero agonizar meus demônios eu quero o cheiro imundo das ruas imundas e das putas sofridas dum cabaré deserto de álcool pecado e gozo.
eu não suporto mais ouvir essas vozes elas não cabem mais em mim elas não têm paradeiro elas não têm ambição elas não permitem um instante sequer de trégua e de amor. eu não consigo mais ouvir esses terços murmurados com devoção pontualmente às dezoito horas eu não consigo auscultar meu coração ser um eco do que as memórias simplesmente ignoram eu não consigo recolher os nacos daquilo que me escapou depois do último pesadelo interrompido pela sensação de que o ar me faltava e o chão era fundo demais pra ser alcançado.
saiam daqui! sumam de mim! por todos os anjos descalços por todos os palhaços sem domingos por todos os instantes que me sobram e por todas as vidas que eu não viverei sem ti eu imploro por paz eu imploro por silêncio eu imploro por um único amanhecer sequer a me devolver aos girassóis esmigalhados na tela dos meus dias de primavera e de brinquedos espalhados anarquicamente pelo chão do quarto que ficou preso num tempo azul que a mim não pertence mais.

quinta-feira, dezembro 08, 2005


a água,

feita da mudez dos deuses

dá vida às pedras

que toca no caminho

antes do sol

antes do sol

segunda-feira, dezembro 05, 2005


dezembro passado escrevi imagens dia após dia, sem parar, não dando trégua ao que me consumia as tripas. havia tristeza e desamor nas minhas células de nada – minha estranha imersão na água que escapa às pedras. hoje, ao acordar, percebi que outro dezembro chegara e eu não passo de um homem lúcido e silencioso, um homem dissipado na ausência das emoções que me são caras, um homem acomodado entre as paredes deste quarto isento de cheiros [ toda assepsia nos esmurra o rosto já perto do amanhecer] um homem beirando a calvície [o tempo me é implacável quando rouba de quem fui a beleza]
hoje, acordei desgastado como um osso que não escapou ao cachorro vira-lata. incômodo, um fiapo de manga preso entre os dentes amarelados. desprezível, pedaço de unha cuspido no chão do quarto. hoje, dezembro espalmou minhas mãos diante de mim e eu pude ver todas as linhas em carne-viva, mendigando por quem não sou, rastejando por quem eu fui, me humilhando por não ter sido. as ressonâncias dos assombros que agora ressurgem atravessam meus escrúpulos sem pedir licença, cavando um abismo que me será refúgio e imensidão [por aqui, nada de novo. nada mesmo]

quinta-feira, dezembro 01, 2005


você não avisou que era o fim. o quarto estava cheio do que nos faltava e ainda era cedo demais pro depois – a madrugada se recusava a aceitar o sol. e você saiu, deixando páginas escritas e palavras soltas pelo chão. você saiu e a mobília ficou, como ficaram também as xícaras esperando o café-da-manhã e as horas sem sentido que me perseguirão a cada volta dos ponteiros daquele relógio antigo que compramos num imaginário relicário europeu. as marcas na pele e as frestas dos desejos e os detalhes obscurecidos da dor. tudo, tudo isso ficou. era preciso um aviso, um bilhetinho, um rabisco qualquer, você deveria saber disso – escrito em azul que é pra não escapar da solidão. você tinha que ter deixado alguma coisa comigo, alguma coisa de sangue, de saliva e de ar. deixado um adeus que não fosse feito de palha desta palha que me ocupa os órgãos e que me estaciona bem no meio da mais árida das estações. era preciso um aceno e um copo de vinho tinto, o último. era preciso drama e paixão, daquela paixão que dilacera e faz da carne hospedeira. qualquer coisa, uma coisa qualquer que não essa indiferença muda que me acaricia os nervos e me dignifica o estado patético de ser lúcido até os ossos, quando eu deveria mesmo era ser um louco a pichar teu nome pelos quatro cantos do meu império rastejante e completamente viciado no vício extremo de ti.

segunda-feira, novembro 28, 2005


estão sempre por perto, essas pessoas de olhos magros. nas ruas desertas, são elas que chegam e levam embora a demência que nos era companheira fiel e faminta. nos dias onde o calor provoca irritação e raiva, são elas as que riem escondidas atrás das portas, covardes e bondosas como todo bom cristão [amaldiçoadas sejam!] sempre esperançosas. sempre prestativas. sempre atenciosas. sempre por perto a sugar até a última gota do nosso desespero. e ficam ali. ficam aqui. ficam por todas partes. esperando pacientemente enquanto desfiam nossos cérebros com dedos de médicos envelhecidos e ausentes. esperando pacientemente, como se fosse a única coisa a fazer, como se soubessem que o amanhã será abatido pelas suas vozes veladas – vozes decompostas em sessenta cânticos, um pra cada volta do ponteiro, num ciclo sem fim a nos regular o humor, o comportamento, os usos, os costumes, as virtudes, as paixões, os lamentos, a dor, a solidão, os vícios[nada lhes escapa] pessoas assim são um teto escuro, dum céu escuro, duma vida engasgada entre os sonhos e as mentiras. seus olhos magros não têm fundo nem horizonte. não têm sangue nem alma nem pele nem brilho nem musculatura nem ódio nem sinal qualquer de emoções. não têm nada e de nada são feitos, estes imensos e incorruptíveis olhos magros que na dobradura do tempo esperam ansiosos por mim.

quinta-feira, novembro 24, 2005


é de dia que minha carne alimenta todos os rostos anônimos que vivem em mim – meus demônios silenciosos, incomodamente silenciosos. e quanto mais a manhã acalora as ruas e suas pessoas revestidas de felicidade, mais de mim rouba o horizonte – entrega-me um futuro escrito em letras mudas e sem mãos; um futuro infestado de cores higiênicas demais, ausentes demais, indiferentes demais, exatas demais, resistentes demais, virtuosas demais,

l
ú
c
i
d
a
s

demais. não, não há nada, nada que se compare aos primeiros raios do sol invadindo o meu quarto e me fazendo lembrar das próximas horas a serem riscadas do meu calendário de um ano só calcificado em doze partes – horas marcadas num relógio feito duma descrença viva a crescer desordenadamente após cada tropeço meu.

é de madrugada que a carne, a maldita carne me inunda de desejos e me faz querer sempre tudo de ti, sempre mais e mais da perversa embriaguez dos teus sentidos, da selvageria nua dos teus instintos, dos pecados delirantes dos teus fluidos; mais das tuas ancas e seios, mais dos teus pêlos e pele, mais dos teus lábios e nuca, tudo assim, exageradamente demais, desmedidamente demais, freneticamente demais,

d
e
s
p
u
d
o
r
a
d
a
m
e
n
t
e

demais. não, nada é tão verdadeiro quanto os meus segredos postos, as minhas cartas marcadas, os meus amanheceres selados pela tua presença dentro de mim – patético e furioso, batizado pela chuva miúda que desce pelos tetos desta cidade deserta, sou um homem convulsivo e viciado em ti. rastejo aos teus pés abaixo de cão.

segunda-feira, novembro 21, 2005


PEQUENA CANÇÃO PRA TI - é tempo de mergulhar nas paixões sem ligar pro que virá – sentir um frio na barriga e o coração sem freios. é tempo de beijos e arrepios e silêncio [aquele silêncio que os olhares só nos sabem falar quando assim, terrivelmente apaixonados] é tempo de sonhos com gosto de sonho azul do azul leve como nuvens de algodão-doce – você lembra desse azul, não lembra? é tempo de estrela-cadente e fada-madrinha, de carinhar de mãe e cantiga- de- ninar cantada suave, bem suave, feito adormecer de criança no berço – toques assim, pequeninos e que desejamos eternos; toques de fazer a gente ser gente, de fazer de novo acreditar [nada pode ser maior que um toque, whitman] sim, é tempo de nós dois e de mais ninguém, porque ninguém mais sabe disso tudo que nos rouba o ar quando não estamos juntos, que nos estrangula as horas quando não estamos perto, que nos tranca por dentro quando não estamos conosco – sim, da nossa paixão sabemos nós e que se dane o resto! então bóra, vem comigo trazendo apenas o sangue dum tango antigo e as risadas invertebradas dum delírio artaud-bretoniano. pega teus sapatos e passeia teus passos nos meus mundos, que eu caminharei os sapatos meus nos passos dos mundos teus [aos novos mundos que serão só nossos, os nossos pés descalços de água da chuva, os nossos pés calçados de noite cadente, os nossos pés pintados com as cores do outono] vamos então! mergulha comigo, sonha comigo, acredita comigo e nada, nada mais importará; nada, nada mais tropeçará nossos anjos cambaleantes ou nossos deuses bailarinos – nem mesmo o tempo que diz estarmos longe demais do nunca, ou o entardecer que diz estarmos cedo demais do pra sempre – menina dos olhos castanhos que me fazem quem sou, amanhece comigo os teus girassóis.

quarta-feira, novembro 16, 2005



CAIXINHA DE MÚSICA PRA MENINA QUE AMANHECE GIRASSÓIS – eu não soube te alcançar. não me permiti te amar até o impossível. acendi as luzes e destranquei a porta depois que te vi sumir no horizonte. amotinei os barcos de papel que fiz das tuas cartas. mas eu nem sempre fui esse homem mal dito, esse espantalho que rejeita espasmos e se afoga em si mesmo – disso você soube disso bem antes d'eu mesmo quando me olhou nos olhos e azulou minhas auroras entristecidas. você desnudou a farsa que fiz de mim e transformou as poesias que cuspi, os pequenos sóis que amputei e as mínimas virtudes que neguei em canções felizes, em dias felizes, em felicidade cor de anil. fui eu, eu é que insisti em vestir tudo de branco, daquele branco de nuvens que o vento esquece de mudar. mas a felicidade é só um frágil instante que esquece que um dia acabará. um dia tudo acaba antes do fim. um dia tudo muda [as palavras calam como quem conta uma história embalado numa cadeira dentro dum quarto vazio] não, eu nem sempre fui esse homem enraizado na dor, esse falso testemunho, esse tumor no seio da fé – disso você nunca saberá, pois há verdades que eu não possuo. não, eu não tenho mais o tempo comigo [vem e amanhece meus girassóis] fracassei. fiquei emparedado em meio aos meus prazeres de crayon [os mundos que invento serão sempre menores que os teus] isso é o meu jeito de dizer que te amo. isso é o meu jeito de dizer adeus.

domingo, novembro 13, 2005


era fuligem, pequenos círculos soltando-se dentro de mim. era frio e um olhar mais atento deixaria escapar a próxima queda. deus não estará presente. deus não saberá daquilo que sinto. deus não escuta quando o silêncio invade a lucidez dos meus dias de espantalho – é primavera amanhecendo e as cores estão mortas, jazem misturadas à palha do que me é enchimento. estou atado ao teu precipício. nem tão louco, nem tão poeta [sou absorvido por um estado de absoluta descrença que jamais alma alguma alcançará]

quinta-feira, novembro 10, 2005


minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. na verdade, não sei se aos treze ou aos doze ou quatorze. não recordo o ano. o mês, abril. dia dezenove de abril. de fato, ela começou a morrer aos meus onze anos ou dez. foi uma morte lenta, arrastada, sofrida, com dores de cabeça intermináveis – até hoje me apavora a simples idéia de sentir dor-de-cabeça. eu era criança e tentava entender tudo aquilo de exames, de médicos, de fé inabalável seguida por uma descrença furiosa. entender o olhar triste embora cheio de amor com o qual a minha mãe olhava a mim e ao meu irmão dois anos mais novo que eu. entender o tempo que parecia rápido demais e levava tudo embora cedo, cedo demais. entender aquele olhar de despedida sem querer dizer adeus. um olhar que dizia jamais, jamais deixarei vocês sozinhos no mundo. jamais deixarei. o olhar da minha mãe.

lembro dentro da minha alma quando numa tarde ela disse a nós dois, no quintal de casa, debaixo do jambeiro florido, que não queria nos dar trabalho e que sofria por estar causando aquilo tudo. nenhuma palavra saiu da minha boca. meu coração sentiu toda a dor do mundo num só golpe. descrença furiosa. fé inabalável. nesta tarde eu inventei um cantinho em mim pra ficar imune. porém, acima de tudo, havia a presença radiante da minha mãe. as canções de ninar. os abraços. os sorrisos. havia amor. havia banhos de chuva e os ralhos que ela nos dava. aprender a tabuada e os afluentes do rio amazonas. aprender concordância verbal e acentuação. eu amava aprender sobre ciências. sobre insetos. meu irmão odiava estudar. preferia brincar, correr, suar, e jogar futebol, no gol. guardo fotos desse tempo. fotos guardam memórias e lugares. mas não cabemos nelas.

não sei qual o dia, mas eu voltava do cinema com o meu irmão e uns amiguinhos do bairro e estávamos todos sorrindo e o céu estava azul e tinha nuvens que brincavam de serem carneiros e tinha o cachorro da esquina que sempre latia e corria atrás da gente quando passávamos de bicicleta. naquela tarde foi diferente. quando chegamos na nossa rua, de longe, pude ver um movimento estranho na frente de casa. eu sabia. eu soube de imediato e caminhei muitos passos infinitos que eu jurei que nunca iriam terminar pra que tudo permanecesse como num sonho. bem antes dos passos alcançarem o infinito, minha tia e minha avó me abraçaram e disseram que minha mãe estava morrendo – em coma, acho que era isso. teria eu dito uma última palavra, dado um último beijo, sentido um último abraço? descrença combalida. fé destroçada. ódio de tudo. e silêncio no coração.

as lembrança que tenho são confusas. parentes orando, parentes dizendo “douglas, fala com a tua mãe, ela pode te ouvir”. “fala com ela, diz que tu a amas”. mas a minha mãe estava lá, deitada, imóvel, no quarto dela que era tão nosso e tão cheio de vida. “fala com ela, ela pode te ouvir”. eu falava, mas as palavras sequer saiam da garganta e eu chorava e as lágrimas sequer escolhiam onde cair e eu via meu pai a ela agarrado em desespero e meu irmão e minha avó e meu avô e minhas duas tias e meu tio e meu primo e via orações serem entoadas e via a tarde ficando poente e a cadeira de embalo estava vazia e eu sentei e quis de volta o meu canto onde nada poderia me tocar. descrença e fé. “fala com ela”. e minha mãe morta. “fala com ela”. e minha mãe sendo colocada no caixão. “fala com ela”. e o túmulo sendo fechado. “fala com ela”. e eu nem pude dizer adeus.

antes do enterro lembro ainda que estava em casa sentado na cadeira de embalo olhando a minha mãe ali, deitada, quando vi o que era a morte. eu pude escutar um suspiro que seria o último. tudo terminou num instante. num único instante. a vida continuava. eu estava respirando e as pessoas tinham movimento e a porta da sala estava aberta e eu apareci no meio da rua e disse pros coleguinhas que minha mãe tinha morrido e fiz questão de não deixar nenhuma lágrima ou emoção aparecer. eu precisava fazer de conta que aquele cantinho onde nada me atinge realmente existia e que logo mais eu seria adulto e a dor passaria. eu precisava ter fé. descrença furiosa. fé inabalável. eu precisava ser forte e encontrar a estrela cadente que um dia me prometeu que a vida seria feliz, que meus desejos seriam verdade, que a morte ficaria adormecida pra nunca mais acordar.
a dor não soube passar, mas muito passou sem retornar. já não habito a mesma casa, já não brinco com meu irmão, não há pão quentinho no lanche da tarde nem o beijo na testa que nos dizia boa-noite. já não acordo cedo pra ir ao colégio e no meu aniversário não há mais o bolo de chocolate com cobertura de chocolate cuja decoração incluía desenhos feitos com os quatro dentes do garfo de cozinha. meu pai está triste, nunca mais foi feliz de verdade. meu irmão está casado e sério. sou adulto e sóbrio. minto verdades. coleciono palavras. invento memórias. rumino perdas e ainda tenho comigo os girassóis da minha infância. só que nada, nada mesmo ocupa esse vazio que ficou, essa saudade de tudo, essa dilacerante vontade de sentir mais uma vez, só uma vez mais o toque, o carinho, o amor, a ternura, a voz, a presença, o sorriso, o sorriso de chuva que sorria a minha mãe.

segunda-feira, novembro 07, 2005




CANÇÃO PRO MEU IRMÃO

- observa o tempo, está a fazer silêncio. algumas palavras sempre escapam, trazendo saudade e uma sensação de incompletude.

- não, nós ainda somos meninos e nossa mãe nos chama pra dentro de casa. Ainda somos felizes e as manhãs têm sol, têm brincadeiras e banana amassada com leite condensado.


- mas, e o tempo? você não percebe? o silêncio nos envelheceu demais, é mentira ainda sermos assim, infância.

- vê meus olhos? vê as cores que minha pele faz vivas? aqui existem girassóis e cantigas de ninar. isso nos mantém vivos e livres da poeira, você não acredita?

- como? aqui faz silêncio, eu já disse. estamos sós neste mundo, cada qual com uma história, cada qual com seus fantasmas. não há telas a serem pintadas. não há abraços a serem dados. não há adeus. não há olá.
nada! nada!

- estamos sós neste mundo?

- sim, completamente sós.

- o tempo.
o silêncio.
as palavras.
a saudade.
a incompletude.

- e a nossa mãe não pode mais nos chamar pra dentro de casa.

sexta-feira, novembro 04, 2005


amanhã,
serei um sopro solto sob o sol
pedaço de mim mesmo misturado ao acaso
um olhar vadio
um terreno baldio
um sentimento calado

amanhã,
serei as asas da graúna dos contos infantis
cortina envelhecida nas falhas da memória
um resto de homem
um pouco de fome
um hematoma, e só

amanhã,
são meus os dias inglórios
as despedidas que não tive
os remorsos que não pude
as manhãs que invento
sóbrio de ti

segunda-feira, outubro 31, 2005



Do meu deus que me espera, nada posso ter. Do batismo que não lembro, meu nome me carrega quando esqueço de mim. Poucas linhas estão vagas, as palavras cansaram da gente – dor, esperança, perdas, ambições, tudo isso cansa, e as palavras cansaram. Que descansem então onde eu não possa alcançá-las. São cores mudas no meu jardim de flores mortas. Pássaros cegos no meu paraíso insone. Anjos doentes sob a luz do martírio [meu inferno será teu eco, meu poema oco de ti]

Dos meus dias entrincheirados trarei as estrelas dos teus poentes. Minha solidão é o ponto que me mantém lúcido, o lugar exato da redenção. Minhas madrugadas contém horas ímpares, horas vagas por onde procuro em vão a tua companhia. Entreguei a ti os meus desígnios. Abri buracos no céu pra que tu pudesses respirar. Menti orações. Adormeci segredos manchados de fé e testemunho. Meus caminhos tortos. Minha vida mundana [e agora, o que fazer se não estás mais aqui?]

Alcancei o vento e fiz do musgo tempestade.
Sou um homem de palha.
Eu sei fingir sorrir.
Eu sei fingir chorar.

domingo, outubro 30, 2005


- A morte pesa. Mais que a vida, a morte pesa.
- Qual o peso da morte?
- O peso das tardes sem chuva, o peso dos olhos turvos, o peso duma criança trancada em casa, o peso de folhas mortas espalhadas pelo quintal.
- Menos que a dor, a morte pesa.
- Qual o peso da dor?
- O peso das esperanças amputadas, o peso dos abraços interrompidos, o peso dum parque de diversões fechado, o peso de cores estagnadas no pôr-do-sol.
- Leve, a vida é leve. Leve como bolinhas de sabão, leve como dentes-de-leão, leve como minha pequena irmã sorrindo – a leveza dos teus olhos castanhos, desse meu amor insano com fome de te amar.

sábado, outubro 29, 2005


Calor infernal, ar-condicionado quebrado e apenas um ridículo ventilador soprando ar quente no meu rosto. Sim, o mesmo quarto, meus vinis espalhados por todos os cantos e muita, muita poeira nos rodapés. Olhando pro relógio, marco as horas que perco – é uma sensação de extrema inutilidade num mundo abraçado ao útil. Podia escrever alguma imagem e esperar por comentários ardentes e emocionados. Podia ler um livro ou bater cabeça com o bom e sempre rock ‘n’ roll. Porra, eu podia até mesmo sentir a dor que sinto, mas que deixo escondida num canto qualquer que trago no fingimento ocre dos meus ossos. Não! Eu não preciso de muito. Eu não preciso ir tão longe se não tenho lugar algum pra alcançar. Basta-me a espera por nada, a permanência deste estado insignificante e isento para, ao final, ser ruminado pelas multidões de rostos anônimos que residem em mim.

quinta-feira, outubro 27, 2005


Nesse relógio que marca sempre a mesma hora, nesse álbum que abre sempre na mesma imagem, nesse quarto que murmura sempre o mesmo segredo, nessa dor que incomoda sempre no mesmo lugar, nesse pedaço de medo que assombra sempre o mesmo sonho, eu insisto - você ainda está aqui, você ainda importa, você ainda acende a luz do meu amanhecer feito de silêncio. És a perda e o vazio que me ocupa, a fronteira que me falta e a promessa que não fiz, o meu último instante de humildade e a minha queda acometida de deus [a demência, a demência tomou posse de mim]

terça-feira, outubro 25, 2005

O lado mudo da solidão é lúcido, um espaço rígido, pedregulho distante das ondas do mar. O lado mudo da solidão percorre caminhos áridos, é um réptil nos ignorando sob o sol, uma vírgula perdida no corpo do texto, uma prece estraçalhada dentro do peito. Pesado e paciente, registra nossos mínimos movimentos, dia após dia, hora após hora, por todos os meses do ano, por todos os dias que sobrevivemos, somente pra jogar tudo no nosso rosto, no momento certo, no momento agudo e estanque da dor, quando as pálpebras vestem-se de emoções e fecha-se a porta da alma, essa frágil alma encoberta por cinzas [esperamos em vão por alguém, somos pequenas luzes sem sombras, pequenas chamas sem ar, pequenas lembranças sem álbum de fotos] O lado mudo da solidão tem músculos e esqueleto, tem nervos e articulações, veste-se de sobras e rouba-nos as cores vivas das estações. Intransponível, devora nossos anjos quando estes pelas madrugadas arriscam nos acolher, anjos sujos de nanquim, anjos insones e febris, nossos anjos de olhos pálidos – há anjos por toda parte. Irascível, crava seus dedos de nunca na palma do nosso destino e lança os dados, embaralha as cartas, desencaixa as peças, mistura as letras, brinca de ser deus ao brincar de se importar conosco. O lado mudo da solidão é gélido, um sopro de ontem, buraco aberto no centro das pupilas. O lado mudo da solidão nos faz dormir, nos cobre com lençóis macios cheirando a memórias – feito mãe, nos olha por dentro e sabe exatamente onde tocar.

domingo, outubro 23, 2005


E se aquilo que procuro não existir? [lapso de memória, vazio e fim] E se existir, mas me fugir antes d’eu poder descobrir? [uma imagem molhada de chuva] E se meus olhos estiverem sós, por onde estarão os teus quando nossos sonhos acordarem? [caixinha de música trancada no quarto] E se amanhã tudo estiver partido, nossos sóis e nossas preces, você ainda saberá de mim, menina que desenha cores no lado de dentro da escuridão?

sexta-feira, outubro 21, 2005


Os que amamos partem quando menos esperamos, sem deixar um aceno, um último adeus, uma imagem sólida pra nos estancar a solitude do peito – somos pegos de surpresa e ficamos entregues ao que não entendemos. Os que amamos recortam nossa vida em doze minúsculos pedaços descoloridos, um pra cada mês dos anos que restam – ciclo infestado por ervas-daninhas e entardeceres anestesiados. Nossas preces não são ouvidas e rumores habitam nossos porões. A cada passo que damos nos aproximamos mais daquilo que tememos [a verdadeira agonia está na permanência da vida tatuada na morte, em tudo que fica desocupado demais pra saber-se perene – naquele único sopro de nós mesmos resguardando a lucidez]

quarta-feira, outubro 19, 2005


Sobrevivem poucas cores no meu estado febril. Sou um osso virado do avesso [mudo e pesado, eu desafio a gravidade] Outubro de dois mil e cinco e continuo tecendo os fios deste enredo oco. A emergência da rota de fuga somatiza os fracassos [cadáveres conservados no lado de dentro da alma] Sinapses multiplicadas a esmo geram aceleração atabalhoada e pequenas passagens por onde me escapam as sentenças – frases desconexas impõem paisagens sedimentadas aos nossos corpos que se acomodam nas molduras luxuosas desta exposição milimetricamente planejada. Na sala de estar deste império asséptico, há vermes escondidos onde havia enchimento [o coração das manhãs de domingo costuma estar ocupado demais com a felicidade] Eu planto fagulhas nos dias de chuva. Eu destelho esperança nas madrugadas de calor. Pelas tardes que adormecem o frio dos segredos, minha lucidez espalha outonos ruidosos. Tenho meus planos. Tenho minhas coordenadas. Sei a posição exata dos meus pés neste exato momento. Menina que amanhece girassóis, o amor não mudou com as estações – eu te abraçaria uma cantiga de ninar, mas já não sei de mim o lado oposto da dor.

segunda-feira, outubro 17, 2005



Setembro desperta uma lenta espera que tritura o amor antes mesmo da felicidade alcançar o esôfago. Por dentro das vértebras já de todo fragilizadas pelo tempo circulam verdades fiéis à terra e encharcadas pelo azul amordaçado do mar. Setembro nos tranca em nós mesmos e desenha em nossas mãos uma única linha sustentada pelo silêncio – portal dum entardecer nublado a nos aproximar daquilo que o tempo leva das nossas vidas. A primavera corrompida pela crença. A primavera rascunhada na pele. A primavera caindo em desgraça. A primavera sepultando sonhos – com seus dedos de relva e nos olhando do alto, quebra ao meio nossas memórias como se fossem palitos de fósforo, roubando a luz destas entristecidas tardes poentes.

sábado, outubro 15, 2005


Hoje, papai entrou no meu quarto somente para mostrar uma foto antiga. Nela, reconheci a mim mesmo bem menino. Já não lembro do cheiro que tinha aquela época – a chuva mudou desde que cresci, vendemos a casa da minha infância e onde moro agora sequer tem quintal. Toquei a foto. Olhei o rosto do meu pai e dei um sorriso apático, coberto de medo e distância – tolo homem cicatrizado eu sou. Hoje, ao entrar no meu quarto trazendo uma foto antiga, meu pai me fez lembrar que algumas imagens ficaram, pois precisamos de acalentos dentro do vazio da nossa existência – acordar cedo pra ir ao colégio, brincar de bola no meio da rua, salivar só de ver a manteiga derretendo ao ser passada no pão bem quentinho que meu avô acabara de trazer da padaria pra que pudéssemos lanchar, ter que escovar os dentes depois do almoço, beijar minha mãe na testa antes de ir dormir. Hoje, ao não saber expressar ao meu pai tudo o que realmente senti ao ver a foto antiga que ele me mostrava, descobri que algumas imagens sumiram sem dizer adeus – imagens que ampliam o desespero de perdermos os que amamos a cada dia que passa, de perdermos a nós mesmos abraçados ao tempo que restou. Somos esqueletos expostos num circo de amarguras e insensatez [o insuportável estado de felicidade nos espatifando contra a imparcialidade incômoda do sol poente]

quarta-feira, outubro 12, 2005


Vamos pegar nossos trapos e sair sem rumo, como se ainda fosse possível pôr os pés no chão e sonhar [essa coisa de sonhar juntos costuma expor a carne e deixar a alma órfã e faminta]
Sim, eu sei, permaneço trancado no quarto e as paredes continuam sendo meu referencial de horizonte. Mas, se você aceitar minha loucura, trago um sol pálido e um punhado de estrelas pra enfeitar os teus cabelos, juro.
O pra sempre nem é tão distante assim, está vendo? Quando sinto frio, cubro-me de mim mesmo. Quando faz calor prefiro inventar precipícios. Minhas mãos têm linhas curtas – você saberá como tê-las.
Sair sem rumo, vamos? Há chuva mais adiante e na chuva costumamos crescer – nossas roupas vestem partículas de amanhã [feito jardim cheio de girassóis]
Há um tom avermelhado na inquietude. Um gosto azul no que falta. Um sopro acinzentado no medo de sair do lugar [o medo que me invade sem você e que me prende aqui] Já a indiferença é branca do branco do gesso – isso é estranho, não?
No inverno, ainda digo teu nome. Na primavera, escrevo planos. Anulo-os no verão. Outono é tempo de sangrar as perdas – sou um fantasma sem estações.
Na cidade que me pertence, as ruas têm os teus olhos, as velhas casas de azulejos portugueses têm os teus olhos, as crianças brincando na praça têm os teus olhos – até mesmo os barcos que se despedem traçando um arco mudo no rio têm os teus olhos.
Na cidade que me escapa, estou sozinho e não sei escrever canções.
Vem, vamos pegar nossos trapos e seguir sem rumo. Deve ser bom chegar juntinhos a nenhum lugar se conosco temos uma colcha de retalhos que trouxemos da infância e alguns travesseiros que roubamos das nuvens.
Vem, ainda temos algumas vidas pra contar. Vem que eu te mostro como fazer um oceano de conchinhas [da última vez eu te mostrei como fazer meu coração relampejar, mas você foi embora e levou a ventania]
Há lugares que lembro, lugares vazios quando estão sem ti. Há pessoas que se foram pra não mais voltar, pessoas a impedir que a minha vida murche quando não estás aqui. Em tudo isso, há você. Na tua ausência, há você. Na tua lonjura, há você. Na tua quietude, há você. Então, vem. Meus instintos precisam de ti. Minha fome tem fome de ti. Meus segredos sussurram por ti. Meus demônios arranham-me as virtudes por ti.
Vem, mulher que dança anjos amotinados. Vem, mulher das costas de pássaros noturnos. Vem, mulher que brinca de destino no piscar dos pirilampos. Vem! A ti e só a ti, entrego a minha essência e os meus fluidos; meus ossos e os meus desenhos de menino sujo de tinta [esquilo] A ti, meu único e louco amor.

segunda-feira, outubro 10, 2005


Um nódulo de angústia pontuado pelo tic-tac dum relógio que não conseguimos ver – amor e restos humanos [somos patéticos ao procurarmos por um alguém que nos preencha o vazio] Lúcidos ou não, seguir vivos nos importa, e a simples visão do fracasso nos entope de preces – o fervor dos que rastejam de pé [somos insetos aprisionados em volta de deus] A dor incontida escarra esperança nas calçadas abarrotadas de gente apressada – a redenção asquerosa dos que acreditam até o fim [a carne rasgada cicatriza só para ser eviscerada mais adiante]

sexta-feira, outubro 07, 2005


Um quarto no fim do corredor,
uma réstia de saudade no corpo da memória

Minha mãe e um sonho
Minha mãe e a dor
Minha mãe e a perda
Minha mãe, morta.

Um quarto no fim do corredor,
uma única chance que não houve

Minha mãe em algum dia
Minha mãe em algum instante
Minha mãe em algum lugar
Minha mãe, viva

Um quarto no fim do corredor
Um quarto com cheiro de eterno
Um quarto guardando imagens
Um quarto sobrevivendo intocado
Um quarto apartado do medo
E acolhido ternamente
Pelos girassóis
Que me renascem na alma

quarta-feira, outubro 05, 2005


Amanhece teus sonhos, faz silêncio e guarda contigo todos os teus amanhãs – saberás quando tê-los. Escreve em letras escarlates o teu céu com nuvens de algodão. Segue teus passos errantes feitos de orvalho e sombras – teus caminhos são só teus como são os cavalos-marinhos desse oceano que tuas mãos de pássaros semeando vida abraçam em fúria bretoniana. Vem! A ti pertencem as primaveras. É teu todo porvir dos sorrisos de nanquim inscritos na fragilidade de ser feliz. Eternamente feliz.

terça-feira, outubro 04, 2005


a acácia no centro do jardim, a fôrma de bolo preste a ser lambida com os dedos, a lua acordando os pirilampos, meu pai assobiando ao chegar do trabalho, meu irmão e eu brincando de forte-apache, minha mãe sorrindo ao nos contar estórias, o chão do quintal colorido pelas flores do jambeiro, a falta de luz de quase toda noite trazendo pra gente os bichinhos feitos de sombras e mãos – nada está aqui, tudo parece imenso no vazio das cores desfeitas [o tempo que não devia, mas passou depressa e nos levou o infinito]

domingo, outubro 02, 2005


setembro, as cores murmurando flores [amarelas quando crescem por dentro das manhãs. brancas se as nuvens passeiam nos olhos. vermelhas com o suor das brincadeiras de rua. cinzas, quando você partiu. azuis, no meu peito vago - flores azuis do azul da solidão]

quinta-feira, setembro 29, 2005



Pela boca, setembro escapando de mim – as cores da primavera recolhem sobras do destino como se fossem velhas carpideiras sem lágrimas pra chorar. Há dor em demasia aqui, e as paredes do meu quarto já não conseguem isolar o que sinto do que inventei para sobreviver anulado [a infância descalcificada em meus ossos olha direto nos olhos da dormência e some] Meus instantes silentes são pequenos deslizes de humanidade dentro deste coração esvaziado por trinta e oito anos da mais absoluta frieza[as tormentas que obstruí, as alegrias que abortei, todas, cobram seu preço agora]

terça-feira, setembro 27, 2005


Há na vida da gente um lugar empoeirado, quase de todo esquecido, quase tingido de medo – um lugar azul da cor do azul que habita a solidão. Lugar lá dentro, bem dentro do silêncio e da crueza incompreendida de toda dor que dói desalmada, que dói encorpada, que dói como dor nenhuma quisera doer – essa cadência insustentável do que chamamos amor. Lugar nenhum, lugar secreto, lugar quieto, lugar deserto com um quê de inocência – onde assombração nos faz dormir assustados dum susto carinhoso que só avó sabe contar. Um canto de nada, preso entre as vísceras e a alma, entre os olhos e as pálpebras – um canto suave onde estrelas cadentes encontram os pedidos e devolvem o brilho que nós um dia de tão tristonhos que somos esquecemos de fazer ninar. Um canto mateiro onde rios desaguamos e mãe d’água entoa o que encanta pirilampos e faz noite enluarada com gosto de vento e de balanço de rede mansinha chegar. Um pedacinho de mundo onde criança fazemos desse adulto que inventaram nos ossos da gente alguém diferente capaz de mudar com um gesto pequeno, mas bem pequenino, essa vida capenga, doída e fingida pr’um mundo gigante, maior do que dantes – secreta magia de noite e de dia escrita em canção, vivida em poesia. Lugar invisível aflorado na pele, trançado no tempo – na eternidade do que já foi, na permanência do que está, na sensação do que virá – conjugação imprecisa do que nos alimenta os sonhos, do que nos purifica a lucidez, do que nos devolve a loucura, do que nos entrega aos domingos, aos doces domingos e seus bancos de praça, balões coloridos, pipoca quentinha e cachorros latindo de tanto brincar. Há na vida da gente um lugar sem nome, que não tem endereço ou vocação pra terminar, fazendo da gente gestação de centelhas, jardineiros secretos do jardim de girassóis que celebram auroras no amarelo dos dias que só um pintor soube pintar - lugar que nos faz de novo meninos, de novo euforia, de novo sorrisos com gosto de lar. Há na vida da gente um lugar sem fronteiras, lugar sem entrada, muito menos saída. Há nessa vida da gente um lugar encantado que nos faz sonhadores, loucos, loucos anjos sem céu algum pra guardar.

sexta-feira, setembro 23, 2005

A madrugada chega sob a forma patética d’um bufão perdido no tempo – a proximidade do sono é indício de mais um amanhecer que aparenta não saber raiar [existe um sopro inalcançável de solidão nisso tudo, eu sinto] Novamente o sabor da escrita inacabada mastiga o esqueleto da esperança – as cores das palavras estão borradas como se fossem cicatrizes num corpo mendigo a dormir na calçada sob a indiferença calcificada d’outra primavera entulhada por flores póstumas e domingos sem circo. Colo página sobre página, retiro os quadros da sala, desocupo as paredes do quarto, espalho livros pelo chão, empilho as promessas que um dia jurei, catalogo as mentiras que me faltam acreditar, escuto mais uma canção do neil young e derrotado já não consigo esquecer que teus olhos não estiveram aqui.

quarta-feira, setembro 14, 2005


continuo escutando a exatidão das coisas que não foram. exatidão cianótica, feita de golpes secos sobre meus ossos[traumatismos da minh’alma] sei que não tive como lhe dizer adeus e nem mesmo lembro do último instante da sua presença – quando cheguei em casa, ainda criança, o quarto tinha o peso do silêncio a velar memórias. a vida se dá em instantes. a morte é-nos servida em pedaços. a vida encontra-se na morte. a morte digere a vida. a vida remonta sobras. a morte desfaz caminhos. a vida suspira. a morte, jamais.

domingo, setembro 11, 2005

A solidão fica escondida nas conchinhas que vez por outra encontramos numa praia qualquer [remoendo por dentro, junto ao som do mar e ao cheiro do vento, nunca desistindo de nós] Fica nas manhãs que encontram meus olhos a procurar os teus – um desencontro composto de peças já encaixadas, rigidamente acomodadas junto ao sol. A solidão escapa-nos quando o silêncio cresce comprimindo as vértebras, deixando-nos abandonados feito zelador d’um carrossel que não gira, faroleiro numa madrugada sem tempestade, um velho espelho partido com imagem alguma pra respirar.

quinta-feira, setembro 08, 2005


Abafado por dentro, tenho tempo, tenho ódio, tenho pecados, tenho escoriações pela alma e letras escolhidas a esmo. Há dedos arranhando o silêncio – as vértebras são gravetos partidos no quintal [terra preta, jambos espalhados pelo chão e lagartas verdes comendo as folhas da cidreira] Onde estão meus amigos?[cresceram feito câncer, amaram feito loucos, secaram feito rios, adormeceram antes das estrelas cadentes passarem] Onde está o rosto desse teu deus que minha fé cambaleante não consegue acreditar? Onde moram as preces das velhas beatas e o choro das carpideiras? Onde escondo meus medos de menino querendo o colo da mãe, sem ter mãe pra me fazer ninar?

domingo, setembro 04, 2005


O tempo ficou preso na foto. Já não há mais por onde circular. É-me impossível tocá-lo, sabê-lo, trazê-lo junto à chuva que escreveu poesia na grama, nos coretos, nos pássaros, na minha alma que nem havia nascido. Os sorrisos, as brincadeiras, as roupas dos passeios dominicais pela praça, as bonecas que ganhavam centelhas nas mãos daquelas meninas – pequenas irmãs que no olhar trouxeram sementes de sonhos [os girassóis que verdejariam meus dias, minha vida parida em azul – minhas letras desafogando o horizonte]

quinta-feira, setembro 01, 2005


Crescíamos com o sol, com a lua. Crescíamos com as estrelas cadentes que juntávamos. Nossas manhãs semeavam samambaias e ninhos de passarinhos – tínhamos cores que desaguavam como rios nas margens dos papéis sem pauta [a chuva desenhada na alma] Por todas as tardes éramos muitos, éramos juntos, éramos sons – de sorrisos e brincadeiras, de frutas roubadas nos quintais vizinhos e vidraças quebradas por chutes mal calculados. Tínhamos nos olhos a quietude secreta da noite e seus bichinhos feitos de sombra – teatro sem texto, o mundo riscado em giz. Fugíamos das horas que sempre avançavam, como se soubéssemos um dia o peso do tempo vir nos desacelerar, acamar, docilizar, fazer acreditar na vida de gente grande [aquilo de pessoas opacas com cheiro de medo e indisfarçável sensatez] – mesmo assim, não havia tristeza, era como se tudo fosse uma infinita corrida buscando pirilampos no horizonte distante, um carrossel que jamais iria parar. Dói muito saber que tudo ficou estacionado num lugar que não podemos mais alcançar. Vento que sopra memórias pra longe. Assombro que sepulta os girassóis que virão.

terça-feira, agosto 30, 2005


A luz que me escapa nos olhos dos outros, transforma o velho porão em poesia com gosto de manhã crescendo na rapidez das brincadeiras de rua [corações acelerados, olhos arregalados, corpos suados de suor de moleque, sorrisos sorrindo cores e abraçando o mundo todo – o nosso mundo, o mundo que a gente criou] No meu silêncio obtuso de homem assolado por imagens e sons, o pouco tempo que me resta eu invento – bolas de sabão eternizando o sol da minha infância.

quinta-feira, agosto 25, 2005


A cor das nuvens misturando sons e formas dentro dos olhos do menino. Crescia o sorriso a cada gota de chuva que descia pelos telhados das velhas casas portuguesas [ao tocarem o chão, marcando a terra, logo viravam rios – lembranças de quando costumava mudar o curso da chuva, havia sempre um jeito de desaguar no mar] Nas tardes, árvores e ninhos de pássaros acolhiam todos os medos [virar gente grande e triste, esquecer as brincadeiras no fundo do quintal] Era aí que o calor de mãe se fazia mais intenso e, outra vez, mergulhado em fantasia, o menino sorria. Ouve o murmúrio das folhas caídas. Ouve a candura das cigarras poentes. Pequenos toques feitos de nunca mais. Quanto tempo, quanto tempo faz? Houve um dia, o menino. Memórias escritas em azul. Sob a pele, os nervos desnudando a solidão.

terça-feira, agosto 23, 2005


Escolho as palavras, as frestas a serem invadidas pelo sol [desperto poesia na mudez dos amanheceres azuis] Precipito meus desatinos, acometo-me de solidão, tristeza e sede [entrego às lembranças um breve traço de nanquim]

sábado, agosto 20, 2005


Este silêncio é feito de vozes angustiadas e débeis e já não sabe mais a hora de calar. Cinza, rasteja pelo chão pensando ser deus. Azul, devolve cegamente amanhãs de rancor e carrosséis abandonados. Púrpura, retalha a força de seguir além. Branco, inventa um lugar seguro no seio do medo. Vermelho, desjejua meus segredos - interrompe por um segundo o ciclo da dor.

sexta-feira, agosto 19, 2005


É preciso ter o peso da partida escrito nos ossos. A leveza das telhas quando chuva desenha infância. É preciso adormecer os sonhos quando a noite se faz escura demais e o dia parece bolas de sabão sem menino pra soprar. É preciso destelhar os medos, abrir o velho baú de brinquedos, cantar cirandas, pintar poesias, é preciso respirar – tudo pode ser verdejante, mesmo que ensimesmado.

quinta-feira, agosto 18, 2005


Aumentando, os abismos trazem horizontes. O sol. A lua. Estrelas amontoadas e terrenos baldios [tudo centrado no medo de estacionar, ficar perdido nas margens do nada] Meus delírios amanhecem antes do canto dos galos. Minha infância resiste na fluidez das retinas. No espaço entre as palavras que pinto, perco-me em mim mesmo. Quando a lucidez descer escada abaixo, quem estará de pé diante da porta? Quem dirá boa-noite aos filhos que terei? Desobstruirei as imagens tecidas em poesia. Dos meus ossos ressurgirei o destino. Teus olhos castanhos de chuva me pertencerão.

quarta-feira, agosto 17, 2005


Ramifica o azul, expande como se fossem veias [a saúde deste corpo está suspensa, homem combalido asfixiando memórias] No eixo da indigência esmiuçada a presença divina escarra anjos, prontamente aceitos – a salvação. Existe esperança quando a dor é vista do lado de lá.

sexta-feira, agosto 12, 2005


Existe um desespero próprio às palavras enervadas na alma quando vestidas de azul. A distância pinça imagens que nossas retinas teimam em recordar [é a eternidade incompleta dos caminhos espessos] Aí, como aqui, somos crianças cercadas de brinquedos, de cirandas e de sonhos – sorrindo nossos dentes de lua, inventávamos tardes de sol e de chuva que um dia acabaram por envelhecer, tristes e vazias feito conchinhas roubadas do mar.

quinta-feira, agosto 11, 2005


Felicidade se esparrama fora de mim [nas velhinhas conversando defronte das casas, nas saúvas enfileiradas carregando folhas verdes, nos brinquedos de miriti nas mãos dos meninos ribeirinhos, na chuva das quatro horas de Belém do Pará] Felicidade enraizada no rumor de aves na tarde que finda. No livro escrito por letras azuis. Nos paralelepípedos que sobrevivem ao tempo. Felicidade sustentada por um único instante da memória que persiste – delicado suspiro que insisto em prolongar.