segunda-feira, outubro 31, 2005



Do meu deus que me espera, nada posso ter. Do batismo que não lembro, meu nome me carrega quando esqueço de mim. Poucas linhas estão vagas, as palavras cansaram da gente – dor, esperança, perdas, ambições, tudo isso cansa, e as palavras cansaram. Que descansem então onde eu não possa alcançá-las. São cores mudas no meu jardim de flores mortas. Pássaros cegos no meu paraíso insone. Anjos doentes sob a luz do martírio [meu inferno será teu eco, meu poema oco de ti]

Dos meus dias entrincheirados trarei as estrelas dos teus poentes. Minha solidão é o ponto que me mantém lúcido, o lugar exato da redenção. Minhas madrugadas contém horas ímpares, horas vagas por onde procuro em vão a tua companhia. Entreguei a ti os meus desígnios. Abri buracos no céu pra que tu pudesses respirar. Menti orações. Adormeci segredos manchados de fé e testemunho. Meus caminhos tortos. Minha vida mundana [e agora, o que fazer se não estás mais aqui?]

Alcancei o vento e fiz do musgo tempestade.
Sou um homem de palha.
Eu sei fingir sorrir.
Eu sei fingir chorar.

domingo, outubro 30, 2005


- A morte pesa. Mais que a vida, a morte pesa.
- Qual o peso da morte?
- O peso das tardes sem chuva, o peso dos olhos turvos, o peso duma criança trancada em casa, o peso de folhas mortas espalhadas pelo quintal.
- Menos que a dor, a morte pesa.
- Qual o peso da dor?
- O peso das esperanças amputadas, o peso dos abraços interrompidos, o peso dum parque de diversões fechado, o peso de cores estagnadas no pôr-do-sol.
- Leve, a vida é leve. Leve como bolinhas de sabão, leve como dentes-de-leão, leve como minha pequena irmã sorrindo – a leveza dos teus olhos castanhos, desse meu amor insano com fome de te amar.

sábado, outubro 29, 2005


Calor infernal, ar-condicionado quebrado e apenas um ridículo ventilador soprando ar quente no meu rosto. Sim, o mesmo quarto, meus vinis espalhados por todos os cantos e muita, muita poeira nos rodapés. Olhando pro relógio, marco as horas que perco – é uma sensação de extrema inutilidade num mundo abraçado ao útil. Podia escrever alguma imagem e esperar por comentários ardentes e emocionados. Podia ler um livro ou bater cabeça com o bom e sempre rock ‘n’ roll. Porra, eu podia até mesmo sentir a dor que sinto, mas que deixo escondida num canto qualquer que trago no fingimento ocre dos meus ossos. Não! Eu não preciso de muito. Eu não preciso ir tão longe se não tenho lugar algum pra alcançar. Basta-me a espera por nada, a permanência deste estado insignificante e isento para, ao final, ser ruminado pelas multidões de rostos anônimos que residem em mim.

quinta-feira, outubro 27, 2005


Nesse relógio que marca sempre a mesma hora, nesse álbum que abre sempre na mesma imagem, nesse quarto que murmura sempre o mesmo segredo, nessa dor que incomoda sempre no mesmo lugar, nesse pedaço de medo que assombra sempre o mesmo sonho, eu insisto - você ainda está aqui, você ainda importa, você ainda acende a luz do meu amanhecer feito de silêncio. És a perda e o vazio que me ocupa, a fronteira que me falta e a promessa que não fiz, o meu último instante de humildade e a minha queda acometida de deus [a demência, a demência tomou posse de mim]

terça-feira, outubro 25, 2005

O lado mudo da solidão é lúcido, um espaço rígido, pedregulho distante das ondas do mar. O lado mudo da solidão percorre caminhos áridos, é um réptil nos ignorando sob o sol, uma vírgula perdida no corpo do texto, uma prece estraçalhada dentro do peito. Pesado e paciente, registra nossos mínimos movimentos, dia após dia, hora após hora, por todos os meses do ano, por todos os dias que sobrevivemos, somente pra jogar tudo no nosso rosto, no momento certo, no momento agudo e estanque da dor, quando as pálpebras vestem-se de emoções e fecha-se a porta da alma, essa frágil alma encoberta por cinzas [esperamos em vão por alguém, somos pequenas luzes sem sombras, pequenas chamas sem ar, pequenas lembranças sem álbum de fotos] O lado mudo da solidão tem músculos e esqueleto, tem nervos e articulações, veste-se de sobras e rouba-nos as cores vivas das estações. Intransponível, devora nossos anjos quando estes pelas madrugadas arriscam nos acolher, anjos sujos de nanquim, anjos insones e febris, nossos anjos de olhos pálidos – há anjos por toda parte. Irascível, crava seus dedos de nunca na palma do nosso destino e lança os dados, embaralha as cartas, desencaixa as peças, mistura as letras, brinca de ser deus ao brincar de se importar conosco. O lado mudo da solidão é gélido, um sopro de ontem, buraco aberto no centro das pupilas. O lado mudo da solidão nos faz dormir, nos cobre com lençóis macios cheirando a memórias – feito mãe, nos olha por dentro e sabe exatamente onde tocar.

domingo, outubro 23, 2005


E se aquilo que procuro não existir? [lapso de memória, vazio e fim] E se existir, mas me fugir antes d’eu poder descobrir? [uma imagem molhada de chuva] E se meus olhos estiverem sós, por onde estarão os teus quando nossos sonhos acordarem? [caixinha de música trancada no quarto] E se amanhã tudo estiver partido, nossos sóis e nossas preces, você ainda saberá de mim, menina que desenha cores no lado de dentro da escuridão?

sexta-feira, outubro 21, 2005


Os que amamos partem quando menos esperamos, sem deixar um aceno, um último adeus, uma imagem sólida pra nos estancar a solitude do peito – somos pegos de surpresa e ficamos entregues ao que não entendemos. Os que amamos recortam nossa vida em doze minúsculos pedaços descoloridos, um pra cada mês dos anos que restam – ciclo infestado por ervas-daninhas e entardeceres anestesiados. Nossas preces não são ouvidas e rumores habitam nossos porões. A cada passo que damos nos aproximamos mais daquilo que tememos [a verdadeira agonia está na permanência da vida tatuada na morte, em tudo que fica desocupado demais pra saber-se perene – naquele único sopro de nós mesmos resguardando a lucidez]

quarta-feira, outubro 19, 2005


Sobrevivem poucas cores no meu estado febril. Sou um osso virado do avesso [mudo e pesado, eu desafio a gravidade] Outubro de dois mil e cinco e continuo tecendo os fios deste enredo oco. A emergência da rota de fuga somatiza os fracassos [cadáveres conservados no lado de dentro da alma] Sinapses multiplicadas a esmo geram aceleração atabalhoada e pequenas passagens por onde me escapam as sentenças – frases desconexas impõem paisagens sedimentadas aos nossos corpos que se acomodam nas molduras luxuosas desta exposição milimetricamente planejada. Na sala de estar deste império asséptico, há vermes escondidos onde havia enchimento [o coração das manhãs de domingo costuma estar ocupado demais com a felicidade] Eu planto fagulhas nos dias de chuva. Eu destelho esperança nas madrugadas de calor. Pelas tardes que adormecem o frio dos segredos, minha lucidez espalha outonos ruidosos. Tenho meus planos. Tenho minhas coordenadas. Sei a posição exata dos meus pés neste exato momento. Menina que amanhece girassóis, o amor não mudou com as estações – eu te abraçaria uma cantiga de ninar, mas já não sei de mim o lado oposto da dor.

segunda-feira, outubro 17, 2005



Setembro desperta uma lenta espera que tritura o amor antes mesmo da felicidade alcançar o esôfago. Por dentro das vértebras já de todo fragilizadas pelo tempo circulam verdades fiéis à terra e encharcadas pelo azul amordaçado do mar. Setembro nos tranca em nós mesmos e desenha em nossas mãos uma única linha sustentada pelo silêncio – portal dum entardecer nublado a nos aproximar daquilo que o tempo leva das nossas vidas. A primavera corrompida pela crença. A primavera rascunhada na pele. A primavera caindo em desgraça. A primavera sepultando sonhos – com seus dedos de relva e nos olhando do alto, quebra ao meio nossas memórias como se fossem palitos de fósforo, roubando a luz destas entristecidas tardes poentes.

sábado, outubro 15, 2005


Hoje, papai entrou no meu quarto somente para mostrar uma foto antiga. Nela, reconheci a mim mesmo bem menino. Já não lembro do cheiro que tinha aquela época – a chuva mudou desde que cresci, vendemos a casa da minha infância e onde moro agora sequer tem quintal. Toquei a foto. Olhei o rosto do meu pai e dei um sorriso apático, coberto de medo e distância – tolo homem cicatrizado eu sou. Hoje, ao entrar no meu quarto trazendo uma foto antiga, meu pai me fez lembrar que algumas imagens ficaram, pois precisamos de acalentos dentro do vazio da nossa existência – acordar cedo pra ir ao colégio, brincar de bola no meio da rua, salivar só de ver a manteiga derretendo ao ser passada no pão bem quentinho que meu avô acabara de trazer da padaria pra que pudéssemos lanchar, ter que escovar os dentes depois do almoço, beijar minha mãe na testa antes de ir dormir. Hoje, ao não saber expressar ao meu pai tudo o que realmente senti ao ver a foto antiga que ele me mostrava, descobri que algumas imagens sumiram sem dizer adeus – imagens que ampliam o desespero de perdermos os que amamos a cada dia que passa, de perdermos a nós mesmos abraçados ao tempo que restou. Somos esqueletos expostos num circo de amarguras e insensatez [o insuportável estado de felicidade nos espatifando contra a imparcialidade incômoda do sol poente]

quarta-feira, outubro 12, 2005


Vamos pegar nossos trapos e sair sem rumo, como se ainda fosse possível pôr os pés no chão e sonhar [essa coisa de sonhar juntos costuma expor a carne e deixar a alma órfã e faminta]
Sim, eu sei, permaneço trancado no quarto e as paredes continuam sendo meu referencial de horizonte. Mas, se você aceitar minha loucura, trago um sol pálido e um punhado de estrelas pra enfeitar os teus cabelos, juro.
O pra sempre nem é tão distante assim, está vendo? Quando sinto frio, cubro-me de mim mesmo. Quando faz calor prefiro inventar precipícios. Minhas mãos têm linhas curtas – você saberá como tê-las.
Sair sem rumo, vamos? Há chuva mais adiante e na chuva costumamos crescer – nossas roupas vestem partículas de amanhã [feito jardim cheio de girassóis]
Há um tom avermelhado na inquietude. Um gosto azul no que falta. Um sopro acinzentado no medo de sair do lugar [o medo que me invade sem você e que me prende aqui] Já a indiferença é branca do branco do gesso – isso é estranho, não?
No inverno, ainda digo teu nome. Na primavera, escrevo planos. Anulo-os no verão. Outono é tempo de sangrar as perdas – sou um fantasma sem estações.
Na cidade que me pertence, as ruas têm os teus olhos, as velhas casas de azulejos portugueses têm os teus olhos, as crianças brincando na praça têm os teus olhos – até mesmo os barcos que se despedem traçando um arco mudo no rio têm os teus olhos.
Na cidade que me escapa, estou sozinho e não sei escrever canções.
Vem, vamos pegar nossos trapos e seguir sem rumo. Deve ser bom chegar juntinhos a nenhum lugar se conosco temos uma colcha de retalhos que trouxemos da infância e alguns travesseiros que roubamos das nuvens.
Vem, ainda temos algumas vidas pra contar. Vem que eu te mostro como fazer um oceano de conchinhas [da última vez eu te mostrei como fazer meu coração relampejar, mas você foi embora e levou a ventania]
Há lugares que lembro, lugares vazios quando estão sem ti. Há pessoas que se foram pra não mais voltar, pessoas a impedir que a minha vida murche quando não estás aqui. Em tudo isso, há você. Na tua ausência, há você. Na tua lonjura, há você. Na tua quietude, há você. Então, vem. Meus instintos precisam de ti. Minha fome tem fome de ti. Meus segredos sussurram por ti. Meus demônios arranham-me as virtudes por ti.
Vem, mulher que dança anjos amotinados. Vem, mulher das costas de pássaros noturnos. Vem, mulher que brinca de destino no piscar dos pirilampos. Vem! A ti e só a ti, entrego a minha essência e os meus fluidos; meus ossos e os meus desenhos de menino sujo de tinta [esquilo] A ti, meu único e louco amor.

segunda-feira, outubro 10, 2005


Um nódulo de angústia pontuado pelo tic-tac dum relógio que não conseguimos ver – amor e restos humanos [somos patéticos ao procurarmos por um alguém que nos preencha o vazio] Lúcidos ou não, seguir vivos nos importa, e a simples visão do fracasso nos entope de preces – o fervor dos que rastejam de pé [somos insetos aprisionados em volta de deus] A dor incontida escarra esperança nas calçadas abarrotadas de gente apressada – a redenção asquerosa dos que acreditam até o fim [a carne rasgada cicatriza só para ser eviscerada mais adiante]

sexta-feira, outubro 07, 2005


Um quarto no fim do corredor,
uma réstia de saudade no corpo da memória

Minha mãe e um sonho
Minha mãe e a dor
Minha mãe e a perda
Minha mãe, morta.

Um quarto no fim do corredor,
uma única chance que não houve

Minha mãe em algum dia
Minha mãe em algum instante
Minha mãe em algum lugar
Minha mãe, viva

Um quarto no fim do corredor
Um quarto com cheiro de eterno
Um quarto guardando imagens
Um quarto sobrevivendo intocado
Um quarto apartado do medo
E acolhido ternamente
Pelos girassóis
Que me renascem na alma

quarta-feira, outubro 05, 2005


Amanhece teus sonhos, faz silêncio e guarda contigo todos os teus amanhãs – saberás quando tê-los. Escreve em letras escarlates o teu céu com nuvens de algodão. Segue teus passos errantes feitos de orvalho e sombras – teus caminhos são só teus como são os cavalos-marinhos desse oceano que tuas mãos de pássaros semeando vida abraçam em fúria bretoniana. Vem! A ti pertencem as primaveras. É teu todo porvir dos sorrisos de nanquim inscritos na fragilidade de ser feliz. Eternamente feliz.

terça-feira, outubro 04, 2005


a acácia no centro do jardim, a fôrma de bolo preste a ser lambida com os dedos, a lua acordando os pirilampos, meu pai assobiando ao chegar do trabalho, meu irmão e eu brincando de forte-apache, minha mãe sorrindo ao nos contar estórias, o chão do quintal colorido pelas flores do jambeiro, a falta de luz de quase toda noite trazendo pra gente os bichinhos feitos de sombras e mãos – nada está aqui, tudo parece imenso no vazio das cores desfeitas [o tempo que não devia, mas passou depressa e nos levou o infinito]

domingo, outubro 02, 2005


setembro, as cores murmurando flores [amarelas quando crescem por dentro das manhãs. brancas se as nuvens passeiam nos olhos. vermelhas com o suor das brincadeiras de rua. cinzas, quando você partiu. azuis, no meu peito vago - flores azuis do azul da solidão]