quarta-feira, dezembro 28, 2005


pai,
esses anjos tão lúcidos,
deixa-os aqui.

esses anjos tão limpos,
deixa-os aqui.

esses anjos mudos, esses anjos tenros, esses anjos que velam,
esses anjos que guardam e protegem,
deixa-os aqui.

pai,
deixa-os aqui, os anjos
deixa-os aqui, comigo

pois lá fora as auroras já sonharam
e eu preciso de um pouco de paz.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

DEZEMBRO EM CINCO PEQUENAS VARIAÇÕES

I RENASCER

acordei esquecido, hoje é um daqueles dias do décimo segundo mês nos quais o que menos interessa é a ordem correta dos talheres ou o ar quente que o ventilador devolve no meu rosto inexpressivo de homem inexpressivo e absolutista que não se permite chorar e que goza gozos invertidos na palma da mão direita. basta uma olhadela pra constatar que lá fora as pessoas exibem orgulhosamente o repertório de dezembro – felicitações, paz, saúde, harmonia e sorrisos. muitos sorrisos. sorrisos por todos os lugares até mesmo nas crianças escondidas nas calçadas mortas de fome de medo de indiferença de desamor e de razão [a razão nos mata a todos, mais cedo ou mais tarde]


II BLASFÊMIA

as pessoas são amáveis e gentis umas com as outras quando chega dezembro. quando dezembro chega as pessoas realmente são boas umas com as outras – essa bondade cristã que coloca as mãos em nosso pescoço e diz
seja feliz assim mesmo. essa felicidade imposta. essa bondade tingida de branco que repete a mesma estúpida canção a manter-nos a infância em estado vegetativo - ela não levantará desse leito, vocês não conseguem ver? maldita seja a bondade dessas pessoas boas e asquerosamente bem-nutridas. maldita seja a bondade que persiste na mentira de que tudo é possível de que tudo é tão bonito de que somos todos irmãos e que somos todos filhos de um deus amável onipresente onisciente onipotente deus da benevolência e do perdão – esse deus não acredita em mim esse deus não acredita em ti esse deus não acredita em nós esse deus se diverte enquanto dormimos enquanto nos fudemos de todo enquanto mendigamos por amor enquanto apodrecemos nos leitos das nossas mortes ainda vivas e inválidas.


III ESCÁRNIO

acordei esquecido e pouco importa todos os passos que dei todas as frases que pintei todas as amarguras que digeri e todos os anjos que vomitei [no céu da minha demência os anjos ainda sabem sorrir, meus anjos retirantes que desenham chuva] hoje é mais um daqueles dias intermináveis dum dezembro que sempre sempre sempre é o mesmo dezembro [um dezembro embrulhado pra presente e que faz da gente um sopro um suspiro um risco de giz num quadro negro numa sala de aula que só ensina rancor perdas e fingimento]


IV ALMA

felicidade! desgraça de felicidade natalina feita de isopor e de tinta fresca prestes a ser manchada. dezembro é um mês mentiroso feito da mentira mais açucarada, feito da mentira que borrifa litros e litros duma fraternidade esclerosada mantida viva às custas de esmolas e esperança. dezembro é um mês feito de cinzas – as bocas que devoram dezembro são banguelas, os cus que defecam dezembro são desalmados, os olhos que refletem dezembro são opacos, as mãos que velam dezembro são trêmulas e vivem suadas. dezembro é só mais um mês de trinta e um dias. não há escape da solidão não há acalento nem porcaria alguma. dezembro! dezembro! dezembro! dezembro! maldito seja todo dezembro porque minha mãe não está mais aqui e minha tia e meu avô e minha avó também e meus brinquedos também e as estrelas-cadentes e os vaga-lumes e os abraços que eram de verdade e a neve que era de mentira e a paz que me fazia dormir tudo isso nunca mais, nunca mais, nunca mais estará aqui [eu tenho fotos, fotos dos que amo, algumas fotos, mas fotos são arremedos, fotos são instantes perdidos que ficam na gente só pra aumentar aquilo que nos corrói]

V COMUNHÃO

trinta e um dias inscritos nos músculos. trinta e um dias e mais alguns segundos quem sabe minutos pra que tudo recomece. trinta e um dias – dias que continuarão aqui quando tudo tiver partido, quando eu tiver partido e as cidades continuarem iluminadas e as pessoas, outras pessoas, prosseguirem na crença de serem felizes de fato. dezembro é um mês curto quando amanhece e infinito quando chega a noite. dezembro é um mês que nos suga a alma e escarra a carne. dezembro é um mês torto, um mês enrugado. dezembro é um mês sem cor em meio a tantas cores. dezembro é um mês cirúrgico [o corte preciso a expor toda a dor que precisa ser anestesiada] dezembro é um mês que nos oferece dádivas sem querer nada em troca. dezembro é um mês hipócrita. dezembro é um mês feliz e triste, diferente, bem diferente da felicidade e da tristeza dos demais.

terça-feira, dezembro 20, 2005

deus não é gentil nem bondoso. deus esquece e confunde. deus não fala em voz alta. deus sua nas axilas. deus é incapaz de desnudar seus pecados diante de nós - deus peca feito um bicho qualquer.

deus afaga meus cabelos quando quer atenção. deus esmigalha meus ossos quando se curva às minhas virtudes. deus é irredutível. deus é vulgar e bonachão – deus se faz de surdo sempre que oramos, e sorri.

deus embaralha destinos sobre a cama. deus nos quer de joelhos. deus espera que apodreçamos em febril devoção. deus não foi batizado. deus não foi registrado – deus brinca de ser o nosso redentor.

deus é um rosto desfigurado pelo tempo. deus é uma frase mal dita em meio a tanto barulho. deus é intranqüilo. deus é uma pena prescrita. deus é um lamento reciclado – deus lança a sorte e vicia os dados.

deus é um rascunho. deus é auto-suficiente. deus é arrogante. deus é esnobe. deus é minha falsa medida. deus é abobalhado. deus é detestável e pueril – deus nunca foi pai e não soube ser mãe.

deus é meu testemunho mentiroso. deus é aquilo que me escapa nos sonhos. deus é o que me falta quando a dor chega. deus sobrevive às velas e aos túmulos – deus adultera as marcas azuis da solidão.

deus apaga estrelas equilibrado sobre pernas-de-pau. deus finge clemência quando quer reverências. deus é cínico e mal-humorado. deus é frágil. deus é mal-alimentado – deus tem medo daquilo que não sabe.

deus esconde a idade. deus disfarça as fraquezas. deus tem mãos trêmulas. deus não sabe dormir em silêncio. deus acorda assustado. deus cheira mal e rói as unhas – deus coleciona moedas enferrujadas.

deus me desconhece. deus me entristece. deus me faz a alma pesada e sorrateira. deus equaciona meus destemperos e corrompe meus vícios. deus obscurece minhas auroras – deus é meu fingimento e meu desamor.

deus sabe onde eu moro. deus me cumprimenta pelas ruas. deus estipula valores e calcula seus lucros. deus obturou todos os dentes. deus não planta girassóis – deus um dia acordou e gostou do que viu.
deus escreve comigo suas linhas tortas. deus guarda mordaças no fundo dos bolsos. deus confunde as cores e pinta aquarelas. deus é destro. deus é covarde e ardiloso – deus sou eu na minha lucidez.

domingo, dezembro 18, 2005


é preciso fixar-lhe o centro, atar-lhe os nervos, dar-lhe um nó na garganta do grito. é preciso mesmo velar os espelhos que tombam ao tempo, numa procissão de corpos encharcados pela apatia do mesmo, sempre o mesmo, dia após dia. é preciso que as portas sejam suficientemente pesadas para não haver escape – nem da claridade do sol, nem da intensidade da lua. é preciso deixar o menino sozinho no seu canto. longe de tudo. longe de deus e dos anjos. longe das sombras que crescem debaixo da pele e das feridas que assolam a alma. é preciso deixar o menino sozinho. longe, bem longe da dor.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

aos trilhos e trens, sobrevivemos nós, atravessando nossas trilhas de estreitezas e alargamentos - trilhas escritas na carne, estreitas; trilhas nodulares da fuga, largas; trilhas descabidas da paixão, estreitas; trilhas lineares da razão, largas [a régua das medidas está guardada numa caixa de sonhos que segue viagem entre os vagões] sim, há lapsos de memória nos lembrando quem somos – do pó que viemos quero a mentira vestida de deus. há sopros de restos de trapos de ontem incrustados nos sorrisos que sorrimos diante do que hoje nos parece lucidez – quero o murmúrio das chuvas em plena praça saudando meus pecados. aos trilhos e destrilhamentos dessas trilhas da vida da gente, celebro eu uma canção atonal de mim mesmo – manchada de sêmen, de sangue, de vinho e de dor.

segunda-feira, dezembro 12, 2005


saiam tirem levem essas vozes daqui! eles estão todos mortos eles estão todos tortos eles não voltam mais eles não descansam em paz eles não pertencem a esse lugar eles ficaram trancados naquela casa naquela sala naqueles corredores naquele tempo que nos fez tão felizes e depois foi embora sem dizer até outro dia. malditos sejam! malditos são! malditos, mil vezes malditos e suas vozes que só a mim dizem como se eu fosse o único passível de saber desses cânticos que jazem no lado de lá da noite [visível e afável, mentiroso e perverso, adoecido e eterno]
por que me cercam de paredes se as paredes não sabem sonhar? por que me banham dessa água se eu já deságuo estrelas e vaga-lumes e papoulas? por que me queimam a carne se eu sou das cinzas o futuro?
eu sou meu deus e sou um deus de merda eu sou um deus disfarçado eu sou um deus invertebrado eu sou um deus angustiado eu sou um deus que esqueceu que era espantalho e ousou sorrir [rasguei páginas em branco e tranquei as portas do meu paraíso – sou meu próprio juiz e sentencio eu mesmo a dor das minhas torturas vorazes]
eu sei dos segredos paridos eu sei dos presságios malditos e sei dos bem-aventurados as mentiras que nos velam os sonhos. eu sempre soube antes mesmo da última ceia ter sido servida antes mesmo do último trago ter sido roubado e do último gole ter sido bebido como quem bebe da própria alma a salvação – para sobreviver era necessário depositar a minha sanidade numa instituição qualquer desde que pintada de branco e sem cheiro de nuvens e vestir minhas tardes chuvosas e mastigar minhas hóstias de medo e me ver livre de tudo me ver livre de tudo me ver livre de tudo e de tudo extrair um fim que coubesse em si mesmo que aparasse todas as arestas e pontuasse todos os mínimos detalhes do que eu seria enfim. e eu aceitei e aceito eu aceito sim tudo o que me for ditado tudo aquilo que for imposto tudo aquilo que me for enfiado goela abaixo. eu me subestimo eu imploro e eu rastejo e eu lambo os teus pés pra me ver livre dessas vozes. eu quero abortar meu batismo eu quero agonizar meus demônios eu quero o cheiro imundo das ruas imundas e das putas sofridas dum cabaré deserto de álcool pecado e gozo.
eu não suporto mais ouvir essas vozes elas não cabem mais em mim elas não têm paradeiro elas não têm ambição elas não permitem um instante sequer de trégua e de amor. eu não consigo mais ouvir esses terços murmurados com devoção pontualmente às dezoito horas eu não consigo auscultar meu coração ser um eco do que as memórias simplesmente ignoram eu não consigo recolher os nacos daquilo que me escapou depois do último pesadelo interrompido pela sensação de que o ar me faltava e o chão era fundo demais pra ser alcançado.
saiam daqui! sumam de mim! por todos os anjos descalços por todos os palhaços sem domingos por todos os instantes que me sobram e por todas as vidas que eu não viverei sem ti eu imploro por paz eu imploro por silêncio eu imploro por um único amanhecer sequer a me devolver aos girassóis esmigalhados na tela dos meus dias de primavera e de brinquedos espalhados anarquicamente pelo chão do quarto que ficou preso num tempo azul que a mim não pertence mais.

quinta-feira, dezembro 08, 2005


a água,

feita da mudez dos deuses

dá vida às pedras

que toca no caminho

antes do sol

antes do sol

segunda-feira, dezembro 05, 2005


dezembro passado escrevi imagens dia após dia, sem parar, não dando trégua ao que me consumia as tripas. havia tristeza e desamor nas minhas células de nada – minha estranha imersão na água que escapa às pedras. hoje, ao acordar, percebi que outro dezembro chegara e eu não passo de um homem lúcido e silencioso, um homem dissipado na ausência das emoções que me são caras, um homem acomodado entre as paredes deste quarto isento de cheiros [ toda assepsia nos esmurra o rosto já perto do amanhecer] um homem beirando a calvície [o tempo me é implacável quando rouba de quem fui a beleza]
hoje, acordei desgastado como um osso que não escapou ao cachorro vira-lata. incômodo, um fiapo de manga preso entre os dentes amarelados. desprezível, pedaço de unha cuspido no chão do quarto. hoje, dezembro espalmou minhas mãos diante de mim e eu pude ver todas as linhas em carne-viva, mendigando por quem não sou, rastejando por quem eu fui, me humilhando por não ter sido. as ressonâncias dos assombros que agora ressurgem atravessam meus escrúpulos sem pedir licença, cavando um abismo que me será refúgio e imensidão [por aqui, nada de novo. nada mesmo]

quinta-feira, dezembro 01, 2005


você não avisou que era o fim. o quarto estava cheio do que nos faltava e ainda era cedo demais pro depois – a madrugada se recusava a aceitar o sol. e você saiu, deixando páginas escritas e palavras soltas pelo chão. você saiu e a mobília ficou, como ficaram também as xícaras esperando o café-da-manhã e as horas sem sentido que me perseguirão a cada volta dos ponteiros daquele relógio antigo que compramos num imaginário relicário europeu. as marcas na pele e as frestas dos desejos e os detalhes obscurecidos da dor. tudo, tudo isso ficou. era preciso um aviso, um bilhetinho, um rabisco qualquer, você deveria saber disso – escrito em azul que é pra não escapar da solidão. você tinha que ter deixado alguma coisa comigo, alguma coisa de sangue, de saliva e de ar. deixado um adeus que não fosse feito de palha desta palha que me ocupa os órgãos e que me estaciona bem no meio da mais árida das estações. era preciso um aceno e um copo de vinho tinto, o último. era preciso drama e paixão, daquela paixão que dilacera e faz da carne hospedeira. qualquer coisa, uma coisa qualquer que não essa indiferença muda que me acaricia os nervos e me dignifica o estado patético de ser lúcido até os ossos, quando eu deveria mesmo era ser um louco a pichar teu nome pelos quatro cantos do meu império rastejante e completamente viciado no vício extremo de ti.