segunda-feira, novembro 28, 2005


estão sempre por perto, essas pessoas de olhos magros. nas ruas desertas, são elas que chegam e levam embora a demência que nos era companheira fiel e faminta. nos dias onde o calor provoca irritação e raiva, são elas as que riem escondidas atrás das portas, covardes e bondosas como todo bom cristão [amaldiçoadas sejam!] sempre esperançosas. sempre prestativas. sempre atenciosas. sempre por perto a sugar até a última gota do nosso desespero. e ficam ali. ficam aqui. ficam por todas partes. esperando pacientemente enquanto desfiam nossos cérebros com dedos de médicos envelhecidos e ausentes. esperando pacientemente, como se fosse a única coisa a fazer, como se soubessem que o amanhã será abatido pelas suas vozes veladas – vozes decompostas em sessenta cânticos, um pra cada volta do ponteiro, num ciclo sem fim a nos regular o humor, o comportamento, os usos, os costumes, as virtudes, as paixões, os lamentos, a dor, a solidão, os vícios[nada lhes escapa] pessoas assim são um teto escuro, dum céu escuro, duma vida engasgada entre os sonhos e as mentiras. seus olhos magros não têm fundo nem horizonte. não têm sangue nem alma nem pele nem brilho nem musculatura nem ódio nem sinal qualquer de emoções. não têm nada e de nada são feitos, estes imensos e incorruptíveis olhos magros que na dobradura do tempo esperam ansiosos por mim.

quinta-feira, novembro 24, 2005


é de dia que minha carne alimenta todos os rostos anônimos que vivem em mim – meus demônios silenciosos, incomodamente silenciosos. e quanto mais a manhã acalora as ruas e suas pessoas revestidas de felicidade, mais de mim rouba o horizonte – entrega-me um futuro escrito em letras mudas e sem mãos; um futuro infestado de cores higiênicas demais, ausentes demais, indiferentes demais, exatas demais, resistentes demais, virtuosas demais,

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ú
c
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d
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s

demais. não, não há nada, nada que se compare aos primeiros raios do sol invadindo o meu quarto e me fazendo lembrar das próximas horas a serem riscadas do meu calendário de um ano só calcificado em doze partes – horas marcadas num relógio feito duma descrença viva a crescer desordenadamente após cada tropeço meu.

é de madrugada que a carne, a maldita carne me inunda de desejos e me faz querer sempre tudo de ti, sempre mais e mais da perversa embriaguez dos teus sentidos, da selvageria nua dos teus instintos, dos pecados delirantes dos teus fluidos; mais das tuas ancas e seios, mais dos teus pêlos e pele, mais dos teus lábios e nuca, tudo assim, exageradamente demais, desmedidamente demais, freneticamente demais,

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r
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d
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n
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demais. não, nada é tão verdadeiro quanto os meus segredos postos, as minhas cartas marcadas, os meus amanheceres selados pela tua presença dentro de mim – patético e furioso, batizado pela chuva miúda que desce pelos tetos desta cidade deserta, sou um homem convulsivo e viciado em ti. rastejo aos teus pés abaixo de cão.

segunda-feira, novembro 21, 2005


PEQUENA CANÇÃO PRA TI - é tempo de mergulhar nas paixões sem ligar pro que virá – sentir um frio na barriga e o coração sem freios. é tempo de beijos e arrepios e silêncio [aquele silêncio que os olhares só nos sabem falar quando assim, terrivelmente apaixonados] é tempo de sonhos com gosto de sonho azul do azul leve como nuvens de algodão-doce – você lembra desse azul, não lembra? é tempo de estrela-cadente e fada-madrinha, de carinhar de mãe e cantiga- de- ninar cantada suave, bem suave, feito adormecer de criança no berço – toques assim, pequeninos e que desejamos eternos; toques de fazer a gente ser gente, de fazer de novo acreditar [nada pode ser maior que um toque, whitman] sim, é tempo de nós dois e de mais ninguém, porque ninguém mais sabe disso tudo que nos rouba o ar quando não estamos juntos, que nos estrangula as horas quando não estamos perto, que nos tranca por dentro quando não estamos conosco – sim, da nossa paixão sabemos nós e que se dane o resto! então bóra, vem comigo trazendo apenas o sangue dum tango antigo e as risadas invertebradas dum delírio artaud-bretoniano. pega teus sapatos e passeia teus passos nos meus mundos, que eu caminharei os sapatos meus nos passos dos mundos teus [aos novos mundos que serão só nossos, os nossos pés descalços de água da chuva, os nossos pés calçados de noite cadente, os nossos pés pintados com as cores do outono] vamos então! mergulha comigo, sonha comigo, acredita comigo e nada, nada mais importará; nada, nada mais tropeçará nossos anjos cambaleantes ou nossos deuses bailarinos – nem mesmo o tempo que diz estarmos longe demais do nunca, ou o entardecer que diz estarmos cedo demais do pra sempre – menina dos olhos castanhos que me fazem quem sou, amanhece comigo os teus girassóis.

quarta-feira, novembro 16, 2005



CAIXINHA DE MÚSICA PRA MENINA QUE AMANHECE GIRASSÓIS – eu não soube te alcançar. não me permiti te amar até o impossível. acendi as luzes e destranquei a porta depois que te vi sumir no horizonte. amotinei os barcos de papel que fiz das tuas cartas. mas eu nem sempre fui esse homem mal dito, esse espantalho que rejeita espasmos e se afoga em si mesmo – disso você soube disso bem antes d'eu mesmo quando me olhou nos olhos e azulou minhas auroras entristecidas. você desnudou a farsa que fiz de mim e transformou as poesias que cuspi, os pequenos sóis que amputei e as mínimas virtudes que neguei em canções felizes, em dias felizes, em felicidade cor de anil. fui eu, eu é que insisti em vestir tudo de branco, daquele branco de nuvens que o vento esquece de mudar. mas a felicidade é só um frágil instante que esquece que um dia acabará. um dia tudo acaba antes do fim. um dia tudo muda [as palavras calam como quem conta uma história embalado numa cadeira dentro dum quarto vazio] não, eu nem sempre fui esse homem enraizado na dor, esse falso testemunho, esse tumor no seio da fé – disso você nunca saberá, pois há verdades que eu não possuo. não, eu não tenho mais o tempo comigo [vem e amanhece meus girassóis] fracassei. fiquei emparedado em meio aos meus prazeres de crayon [os mundos que invento serão sempre menores que os teus] isso é o meu jeito de dizer que te amo. isso é o meu jeito de dizer adeus.

domingo, novembro 13, 2005


era fuligem, pequenos círculos soltando-se dentro de mim. era frio e um olhar mais atento deixaria escapar a próxima queda. deus não estará presente. deus não saberá daquilo que sinto. deus não escuta quando o silêncio invade a lucidez dos meus dias de espantalho – é primavera amanhecendo e as cores estão mortas, jazem misturadas à palha do que me é enchimento. estou atado ao teu precipício. nem tão louco, nem tão poeta [sou absorvido por um estado de absoluta descrença que jamais alma alguma alcançará]

quinta-feira, novembro 10, 2005


minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. na verdade, não sei se aos treze ou aos doze ou quatorze. não recordo o ano. o mês, abril. dia dezenove de abril. de fato, ela começou a morrer aos meus onze anos ou dez. foi uma morte lenta, arrastada, sofrida, com dores de cabeça intermináveis – até hoje me apavora a simples idéia de sentir dor-de-cabeça. eu era criança e tentava entender tudo aquilo de exames, de médicos, de fé inabalável seguida por uma descrença furiosa. entender o olhar triste embora cheio de amor com o qual a minha mãe olhava a mim e ao meu irmão dois anos mais novo que eu. entender o tempo que parecia rápido demais e levava tudo embora cedo, cedo demais. entender aquele olhar de despedida sem querer dizer adeus. um olhar que dizia jamais, jamais deixarei vocês sozinhos no mundo. jamais deixarei. o olhar da minha mãe.

lembro dentro da minha alma quando numa tarde ela disse a nós dois, no quintal de casa, debaixo do jambeiro florido, que não queria nos dar trabalho e que sofria por estar causando aquilo tudo. nenhuma palavra saiu da minha boca. meu coração sentiu toda a dor do mundo num só golpe. descrença furiosa. fé inabalável. nesta tarde eu inventei um cantinho em mim pra ficar imune. porém, acima de tudo, havia a presença radiante da minha mãe. as canções de ninar. os abraços. os sorrisos. havia amor. havia banhos de chuva e os ralhos que ela nos dava. aprender a tabuada e os afluentes do rio amazonas. aprender concordância verbal e acentuação. eu amava aprender sobre ciências. sobre insetos. meu irmão odiava estudar. preferia brincar, correr, suar, e jogar futebol, no gol. guardo fotos desse tempo. fotos guardam memórias e lugares. mas não cabemos nelas.

não sei qual o dia, mas eu voltava do cinema com o meu irmão e uns amiguinhos do bairro e estávamos todos sorrindo e o céu estava azul e tinha nuvens que brincavam de serem carneiros e tinha o cachorro da esquina que sempre latia e corria atrás da gente quando passávamos de bicicleta. naquela tarde foi diferente. quando chegamos na nossa rua, de longe, pude ver um movimento estranho na frente de casa. eu sabia. eu soube de imediato e caminhei muitos passos infinitos que eu jurei que nunca iriam terminar pra que tudo permanecesse como num sonho. bem antes dos passos alcançarem o infinito, minha tia e minha avó me abraçaram e disseram que minha mãe estava morrendo – em coma, acho que era isso. teria eu dito uma última palavra, dado um último beijo, sentido um último abraço? descrença combalida. fé destroçada. ódio de tudo. e silêncio no coração.

as lembrança que tenho são confusas. parentes orando, parentes dizendo “douglas, fala com a tua mãe, ela pode te ouvir”. “fala com ela, diz que tu a amas”. mas a minha mãe estava lá, deitada, imóvel, no quarto dela que era tão nosso e tão cheio de vida. “fala com ela, ela pode te ouvir”. eu falava, mas as palavras sequer saiam da garganta e eu chorava e as lágrimas sequer escolhiam onde cair e eu via meu pai a ela agarrado em desespero e meu irmão e minha avó e meu avô e minhas duas tias e meu tio e meu primo e via orações serem entoadas e via a tarde ficando poente e a cadeira de embalo estava vazia e eu sentei e quis de volta o meu canto onde nada poderia me tocar. descrença e fé. “fala com ela”. e minha mãe morta. “fala com ela”. e minha mãe sendo colocada no caixão. “fala com ela”. e o túmulo sendo fechado. “fala com ela”. e eu nem pude dizer adeus.

antes do enterro lembro ainda que estava em casa sentado na cadeira de embalo olhando a minha mãe ali, deitada, quando vi o que era a morte. eu pude escutar um suspiro que seria o último. tudo terminou num instante. num único instante. a vida continuava. eu estava respirando e as pessoas tinham movimento e a porta da sala estava aberta e eu apareci no meio da rua e disse pros coleguinhas que minha mãe tinha morrido e fiz questão de não deixar nenhuma lágrima ou emoção aparecer. eu precisava fazer de conta que aquele cantinho onde nada me atinge realmente existia e que logo mais eu seria adulto e a dor passaria. eu precisava ter fé. descrença furiosa. fé inabalável. eu precisava ser forte e encontrar a estrela cadente que um dia me prometeu que a vida seria feliz, que meus desejos seriam verdade, que a morte ficaria adormecida pra nunca mais acordar.
a dor não soube passar, mas muito passou sem retornar. já não habito a mesma casa, já não brinco com meu irmão, não há pão quentinho no lanche da tarde nem o beijo na testa que nos dizia boa-noite. já não acordo cedo pra ir ao colégio e no meu aniversário não há mais o bolo de chocolate com cobertura de chocolate cuja decoração incluía desenhos feitos com os quatro dentes do garfo de cozinha. meu pai está triste, nunca mais foi feliz de verdade. meu irmão está casado e sério. sou adulto e sóbrio. minto verdades. coleciono palavras. invento memórias. rumino perdas e ainda tenho comigo os girassóis da minha infância. só que nada, nada mesmo ocupa esse vazio que ficou, essa saudade de tudo, essa dilacerante vontade de sentir mais uma vez, só uma vez mais o toque, o carinho, o amor, a ternura, a voz, a presença, o sorriso, o sorriso de chuva que sorria a minha mãe.

segunda-feira, novembro 07, 2005




CANÇÃO PRO MEU IRMÃO

- observa o tempo, está a fazer silêncio. algumas palavras sempre escapam, trazendo saudade e uma sensação de incompletude.

- não, nós ainda somos meninos e nossa mãe nos chama pra dentro de casa. Ainda somos felizes e as manhãs têm sol, têm brincadeiras e banana amassada com leite condensado.


- mas, e o tempo? você não percebe? o silêncio nos envelheceu demais, é mentira ainda sermos assim, infância.

- vê meus olhos? vê as cores que minha pele faz vivas? aqui existem girassóis e cantigas de ninar. isso nos mantém vivos e livres da poeira, você não acredita?

- como? aqui faz silêncio, eu já disse. estamos sós neste mundo, cada qual com uma história, cada qual com seus fantasmas. não há telas a serem pintadas. não há abraços a serem dados. não há adeus. não há olá.
nada! nada!

- estamos sós neste mundo?

- sim, completamente sós.

- o tempo.
o silêncio.
as palavras.
a saudade.
a incompletude.

- e a nossa mãe não pode mais nos chamar pra dentro de casa.

sexta-feira, novembro 04, 2005


amanhã,
serei um sopro solto sob o sol
pedaço de mim mesmo misturado ao acaso
um olhar vadio
um terreno baldio
um sentimento calado

amanhã,
serei as asas da graúna dos contos infantis
cortina envelhecida nas falhas da memória
um resto de homem
um pouco de fome
um hematoma, e só

amanhã,
são meus os dias inglórios
as despedidas que não tive
os remorsos que não pude
as manhãs que invento
sóbrio de ti