domingo, março 25, 2007

da série silêncios


SILÊNCIO UM
não entendia muito bem os silêncios da minha mãe. nos fins de tarde, havia sempre um momento de solidão, um olhar que saltava ao horizonte, um movimento contido das suas mãos a escovar-lhe os cabelos enquanto, sentada, parecia mergulhar mais e mais em si mesma a cada fio roubado pela escova. imaginava o que diziam os silêncios da minha mãe. não havia lamentos, mesmo com toda a dor trazida pela sua doença – as doenças são nossas, são pertences desde sempre habituados conosco; nós as possuímos em suas quietudes e a elas sobrevivemos, até chegar o dia em que, fartas de tanto comodismo, resolvem nos expulsar, como quem enxota ruidosamente um agora inútil hospedeiro, satisfeitas por alcançarem o sentido da existência. perto da morte, não havia tristeza nem esperança nos silêncios da minha mãe.

domingo, março 18, 2007


algumas tardes
apagam todas as cores
pertencentes às minhas lembranças
e ficam estranguladas
naquilo que chamo
saudade

(pesando sobre o meu peito
sem declinarem ao tempo
indiferentes ao anoitecer
maldizem a eternidade)

domingo, março 11, 2007


aqui
eu gosto de ficar

perdoe-me

é minha a solidão

segunda-feira, março 05, 2007

quando o povoado se recolhia às suas casas e se punha a dormir vencido pela quietude do céu estrelado, o velho pescador acocorava-se à beira do rio e escutava as vozes dos espíritos vindas daquelas águas escuras. ninguém mais era capaz de ouvi-las já que a fé tinham perdido e nas antigas preces ribeirinhas só ele cria, a elas agarrando-se com fervor – homem das mãos alumiadas. pelos amigos era chamado de louco; diziam que a mãe-d’água havia lhe roubado a lucidez. dos seis filhos e onze netos restou-lhe passar despercebido, numa invisibilidade só rompida por um ou outro caçoar. dois meses em vigília e o cansaço não lhe abatia, enluarado que estava. madrugada após madrugada, atarefava-se em contar quantos espíritos aquela fundura habitavam. não conseguia, inúmeros que eram. mas deles conhecia os nomes, porque era como se anunciavam, todos ao mesmo tempo, num ressoar de sussurros, ora feito por vozes velhas e cansadas, ora por vozes ainda crianças, de ciranda a brincar. eram vozes perdidas, em desespero. vozes esquecidas, em lamúrias. para cada voz, uma cor – que à beira do rio, qual olhos noturnos brilhavam. para cada voz, um nome. eram nomes comuns, de gente comum. joão. raimundo. pedro. maria. luiza. antonia. nomes de pessoas encantadas murmurando coisas das margens de lá (como ele desejava livrar-se deste corpo pesado e saber as coisas que flutuam nas margens de lá) neste amontoado de cores e vozes e preces e nomes, esquecia de si mesmo e confuso ficava. qual a sua idade, velho homem? onde adormecem as tuas cicatrizes? quantas amarguras selam o teu destino? e o teu nome, por deus, qual o teu nome? como esquecer do próprio nome? ah, quando enluarado ele esquecia! e espírito algum, por mais que a cada um deles implorasse, podia dizer como ele se chamava. lucas. porque sabiam. da fundura do rio os espíritos sabiam que a sua hora ainda estava por chegar.