
eu abri todas as gavetas. eu sangrei todos os fantasmas. eu expus todos os medos. meus demônios, os acariciei com respeito. as palavras, expulsei por completo daqui – não as quero e delas não preciso mais. trouxe meu deus cinzento e trouxe as imagens que estavam amotinadas nas minhas retinas insones. trouxe a mobília e os talheres e as quinquilharias que desocupavam o vazio. trouxe as virtudes que fracassaram e trouxe os planos que pintei em nanquim quando me permiti crer em sonhos. eu trouxe tudo de volta só pra amaldiçoar este ano que termina como ano algum terminou. maldito seja você, ano de dois mil e cinco. maldito seja por todos os anos que me pertencerão.
sim, eu amaldiçôo pra todo o sempre esse ano tingido por cores mortas, esse ano escrito em páginas brancas e frias, esse ano que arrancou de mim pessoas que tanto amo, esse ano que brincou com os ponteiros do relógio da minha cozinha e fez tudo mais arrastado. maldito seja! ano de horas encharcadas pela dor. maldito seja! ano cindido em doze pedaços iguais dum mesmo e amargurado lamento. esses olhos magros que por aqui estiveram, essas verdades descalcificadas, essas vozes, essas paredes, essas felicitações embrulhadas pra presente, essas pessoas que crescem corroídas pela inutilidade como insetos diante da luz – caduquem vocês na paz deserta do paraíso que lhes foi concedido.
no ano novo que agora se esparrama diante de mim, eu terei a felicidade que nunca pertenceu a dezembro. eu terei a chuva dos fins de tarde, o sol, a lua e as estrelas-cadentes e também as águas do rio da minha cidade que brota no meio da selva. eu terei os anjos descalços que esqueceram as mentiras e resolveram brincar. eu terei os sorrisos que me foram amputados. eu terei a fé que me foi mastigada e depois cuspida pro alto. terei as cantigas de ninar outra vez no meu peito e o carinho da minha mãe nos meus dias de solidão. terei os ruídos que medroso escondi no baú. as contusões da minha alma e os teus olhos castanhos, menina dos meus sonhos azuis, eu os terei enfim.
poetas de coisa nenhuma, poetas de vestes amarrotadas e sujas, vocês que me alimentaram na fome e na demência deste ano por mim amaldiçoado e que hoje ficou pra trás, vocês que me salvaram das madrugadas onde nada mais fazia sentido a não ser doses volumosas duma esperança débil, rancorosa e capenga - poetas de mãos e têmporas fortes, de hoje em diante eu vos saúdo e os desafio a dizerem ao mundo que eu sobrevivi impune a esta farsa mundana que eu mesmo inventei, que eu sobrevivi aos pedaços, que eu sobrevivi mesmo que atabalhoado – mas sobrevivi sem culpa e sem pedir perdão. eu sobrevivi a tudo. a tudo eu sobrevivi. e comigo, a alvorada de girassóis que eu busquei em breton.