quinta-feira, novembro 10, 2005


minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. na verdade, não sei se aos treze ou aos doze ou quatorze. não recordo o ano. o mês, abril. dia dezenove de abril. de fato, ela começou a morrer aos meus onze anos ou dez. foi uma morte lenta, arrastada, sofrida, com dores de cabeça intermináveis – até hoje me apavora a simples idéia de sentir dor-de-cabeça. eu era criança e tentava entender tudo aquilo de exames, de médicos, de fé inabalável seguida por uma descrença furiosa. entender o olhar triste embora cheio de amor com o qual a minha mãe olhava a mim e ao meu irmão dois anos mais novo que eu. entender o tempo que parecia rápido demais e levava tudo embora cedo, cedo demais. entender aquele olhar de despedida sem querer dizer adeus. um olhar que dizia jamais, jamais deixarei vocês sozinhos no mundo. jamais deixarei. o olhar da minha mãe.

lembro dentro da minha alma quando numa tarde ela disse a nós dois, no quintal de casa, debaixo do jambeiro florido, que não queria nos dar trabalho e que sofria por estar causando aquilo tudo. nenhuma palavra saiu da minha boca. meu coração sentiu toda a dor do mundo num só golpe. descrença furiosa. fé inabalável. nesta tarde eu inventei um cantinho em mim pra ficar imune. porém, acima de tudo, havia a presença radiante da minha mãe. as canções de ninar. os abraços. os sorrisos. havia amor. havia banhos de chuva e os ralhos que ela nos dava. aprender a tabuada e os afluentes do rio amazonas. aprender concordância verbal e acentuação. eu amava aprender sobre ciências. sobre insetos. meu irmão odiava estudar. preferia brincar, correr, suar, e jogar futebol, no gol. guardo fotos desse tempo. fotos guardam memórias e lugares. mas não cabemos nelas.

não sei qual o dia, mas eu voltava do cinema com o meu irmão e uns amiguinhos do bairro e estávamos todos sorrindo e o céu estava azul e tinha nuvens que brincavam de serem carneiros e tinha o cachorro da esquina que sempre latia e corria atrás da gente quando passávamos de bicicleta. naquela tarde foi diferente. quando chegamos na nossa rua, de longe, pude ver um movimento estranho na frente de casa. eu sabia. eu soube de imediato e caminhei muitos passos infinitos que eu jurei que nunca iriam terminar pra que tudo permanecesse como num sonho. bem antes dos passos alcançarem o infinito, minha tia e minha avó me abraçaram e disseram que minha mãe estava morrendo – em coma, acho que era isso. teria eu dito uma última palavra, dado um último beijo, sentido um último abraço? descrença combalida. fé destroçada. ódio de tudo. e silêncio no coração.

as lembrança que tenho são confusas. parentes orando, parentes dizendo “douglas, fala com a tua mãe, ela pode te ouvir”. “fala com ela, diz que tu a amas”. mas a minha mãe estava lá, deitada, imóvel, no quarto dela que era tão nosso e tão cheio de vida. “fala com ela, ela pode te ouvir”. eu falava, mas as palavras sequer saiam da garganta e eu chorava e as lágrimas sequer escolhiam onde cair e eu via meu pai a ela agarrado em desespero e meu irmão e minha avó e meu avô e minhas duas tias e meu tio e meu primo e via orações serem entoadas e via a tarde ficando poente e a cadeira de embalo estava vazia e eu sentei e quis de volta o meu canto onde nada poderia me tocar. descrença e fé. “fala com ela”. e minha mãe morta. “fala com ela”. e minha mãe sendo colocada no caixão. “fala com ela”. e o túmulo sendo fechado. “fala com ela”. e eu nem pude dizer adeus.

antes do enterro lembro ainda que estava em casa sentado na cadeira de embalo olhando a minha mãe ali, deitada, quando vi o que era a morte. eu pude escutar um suspiro que seria o último. tudo terminou num instante. num único instante. a vida continuava. eu estava respirando e as pessoas tinham movimento e a porta da sala estava aberta e eu apareci no meio da rua e disse pros coleguinhas que minha mãe tinha morrido e fiz questão de não deixar nenhuma lágrima ou emoção aparecer. eu precisava fazer de conta que aquele cantinho onde nada me atinge realmente existia e que logo mais eu seria adulto e a dor passaria. eu precisava ter fé. descrença furiosa. fé inabalável. eu precisava ser forte e encontrar a estrela cadente que um dia me prometeu que a vida seria feliz, que meus desejos seriam verdade, que a morte ficaria adormecida pra nunca mais acordar.
a dor não soube passar, mas muito passou sem retornar. já não habito a mesma casa, já não brinco com meu irmão, não há pão quentinho no lanche da tarde nem o beijo na testa que nos dizia boa-noite. já não acordo cedo pra ir ao colégio e no meu aniversário não há mais o bolo de chocolate com cobertura de chocolate cuja decoração incluía desenhos feitos com os quatro dentes do garfo de cozinha. meu pai está triste, nunca mais foi feliz de verdade. meu irmão está casado e sério. sou adulto e sóbrio. minto verdades. coleciono palavras. invento memórias. rumino perdas e ainda tenho comigo os girassóis da minha infância. só que nada, nada mesmo ocupa esse vazio que ficou, essa saudade de tudo, essa dilacerante vontade de sentir mais uma vez, só uma vez mais o toque, o carinho, o amor, a ternura, a voz, a presença, o sorriso, o sorriso de chuva que sorria a minha mãe.

12 comentários:

Anônimo disse...

(...)

Anônimo disse...

Vazios que são pra continuarem vazios, não há com o que preencher...

hfm disse...

"o sorriso de chuva que sorria a minha mãe".
Belíssimo e como te compreendo.

Su disse...

obgda pela visita ao meu xanax
gostei do teu blog
amei ler-te
voltarei
jocas maradas

Anônimo disse...

Oi Dougalas! Nossa...Que texto! De entristecer e de se emocionar.

Anônimo disse...

meu! minha mãe morreu há 4 meses e eu tenho pensado tanto nesta saudade indizível, nesta falta enorme que ela me faz e no quanto queria mais um carinho... fico meio muda de saber e não saber o que dizer sabe? sei que eu nunca mais serei a mesma... o mundo não será o mesmo e que minha mãe sempre estará em mim. um beijo

Anônimo disse...

Douglas, um texto comovente. perdi minha mãe ano passado e até hoje não sei dizer o quanto isso dói e quanto de saudade sinto. E essa chuva e o sorriso, melhor parar aqui. Grande abraço, e obrigado por esse texto.

Anônimo disse...

Querido Douglas!

Você continua sendo o menino de sua mãe!

Cláudio B. Carlos disse...

Oi Douglas!

Belíssimo texto.


Abraços do CC.

Amélia disse...

Minha mãe morreu-me tinha já 65 anos e isso sucedeu já há quase 25.Mas a dor permanece.Também eu cedo (é sempre cedo quando sofremos a perda)conheci essa dor - que ainda dois, estes anos todos depois.Só que as lágrimas, essas, foram secando enquanto a mágoa permanca e dura...Sim, como disse a secreta mirada,todos somos meninos de nossas mãe.Uma amiga tem sobre a perda da mãe um poema lindíssimo de simples (morreu-lhe aos 10 anos).

soledade disse...

Há algo de terrível e mal resolvido em quase todos nós - os sobreviventes de dores assim. O seu testemunho mostra-o tão bem! Perdi a minha mãe aos 9 anos. Muitos anos depois consegui enfim escrever isto:

E NO ENTANTO O DIA É FUNDO

O horizonte abre-se na cal que maio lava
e no entanto o dia é fundo
de armários, invernos e cheiros
a madeira encerada.
No côncavo de maio existem
antigos sons de respiração,
crianças perdidas no escuro
procurando saídas que não encontram
nunca mais. Lembro-me –
eu brincava no vão da escada
e vieram dizer (seria maio
ou julho talvez) a mãe morreu.

Obrigada pela gentil visita, Douglas

Carlos Besen disse...

Agora entendo das minhas afinidades contigo. Uma mãe não precisa desaparecer para esmagar. Minha infância foi marcada pela convivência com os espasmos psiquiátricos maternos. Crei um canto dentro de mim, comecei a me ver de quina. Um canto fácil, frágil.