sexta-feira, dezembro 23, 2005

DEZEMBRO EM CINCO PEQUENAS VARIAÇÕES

I RENASCER

acordei esquecido, hoje é um daqueles dias do décimo segundo mês nos quais o que menos interessa é a ordem correta dos talheres ou o ar quente que o ventilador devolve no meu rosto inexpressivo de homem inexpressivo e absolutista que não se permite chorar e que goza gozos invertidos na palma da mão direita. basta uma olhadela pra constatar que lá fora as pessoas exibem orgulhosamente o repertório de dezembro – felicitações, paz, saúde, harmonia e sorrisos. muitos sorrisos. sorrisos por todos os lugares até mesmo nas crianças escondidas nas calçadas mortas de fome de medo de indiferença de desamor e de razão [a razão nos mata a todos, mais cedo ou mais tarde]


II BLASFÊMIA

as pessoas são amáveis e gentis umas com as outras quando chega dezembro. quando dezembro chega as pessoas realmente são boas umas com as outras – essa bondade cristã que coloca as mãos em nosso pescoço e diz
seja feliz assim mesmo. essa felicidade imposta. essa bondade tingida de branco que repete a mesma estúpida canção a manter-nos a infância em estado vegetativo - ela não levantará desse leito, vocês não conseguem ver? maldita seja a bondade dessas pessoas boas e asquerosamente bem-nutridas. maldita seja a bondade que persiste na mentira de que tudo é possível de que tudo é tão bonito de que somos todos irmãos e que somos todos filhos de um deus amável onipresente onisciente onipotente deus da benevolência e do perdão – esse deus não acredita em mim esse deus não acredita em ti esse deus não acredita em nós esse deus se diverte enquanto dormimos enquanto nos fudemos de todo enquanto mendigamos por amor enquanto apodrecemos nos leitos das nossas mortes ainda vivas e inválidas.


III ESCÁRNIO

acordei esquecido e pouco importa todos os passos que dei todas as frases que pintei todas as amarguras que digeri e todos os anjos que vomitei [no céu da minha demência os anjos ainda sabem sorrir, meus anjos retirantes que desenham chuva] hoje é mais um daqueles dias intermináveis dum dezembro que sempre sempre sempre é o mesmo dezembro [um dezembro embrulhado pra presente e que faz da gente um sopro um suspiro um risco de giz num quadro negro numa sala de aula que só ensina rancor perdas e fingimento]


IV ALMA

felicidade! desgraça de felicidade natalina feita de isopor e de tinta fresca prestes a ser manchada. dezembro é um mês mentiroso feito da mentira mais açucarada, feito da mentira que borrifa litros e litros duma fraternidade esclerosada mantida viva às custas de esmolas e esperança. dezembro é um mês feito de cinzas – as bocas que devoram dezembro são banguelas, os cus que defecam dezembro são desalmados, os olhos que refletem dezembro são opacos, as mãos que velam dezembro são trêmulas e vivem suadas. dezembro é só mais um mês de trinta e um dias. não há escape da solidão não há acalento nem porcaria alguma. dezembro! dezembro! dezembro! dezembro! maldito seja todo dezembro porque minha mãe não está mais aqui e minha tia e meu avô e minha avó também e meus brinquedos também e as estrelas-cadentes e os vaga-lumes e os abraços que eram de verdade e a neve que era de mentira e a paz que me fazia dormir tudo isso nunca mais, nunca mais, nunca mais estará aqui [eu tenho fotos, fotos dos que amo, algumas fotos, mas fotos são arremedos, fotos são instantes perdidos que ficam na gente só pra aumentar aquilo que nos corrói]

V COMUNHÃO

trinta e um dias inscritos nos músculos. trinta e um dias e mais alguns segundos quem sabe minutos pra que tudo recomece. trinta e um dias – dias que continuarão aqui quando tudo tiver partido, quando eu tiver partido e as cidades continuarem iluminadas e as pessoas, outras pessoas, prosseguirem na crença de serem felizes de fato. dezembro é um mês curto quando amanhece e infinito quando chega a noite. dezembro é um mês que nos suga a alma e escarra a carne. dezembro é um mês torto, um mês enrugado. dezembro é um mês sem cor em meio a tantas cores. dezembro é um mês cirúrgico [o corte preciso a expor toda a dor que precisa ser anestesiada] dezembro é um mês que nos oferece dádivas sem querer nada em troca. dezembro é um mês hipócrita. dezembro é um mês feliz e triste, diferente, bem diferente da felicidade e da tristeza dos demais.

10 comentários:

Anônimo disse...

"Seja feliz assim mesmo". A vida não pára...
Muita paz.
Beijos

Cláudio B. Carlos disse...

Oi Douglas!

É dezembro...

Feliz Natal!

Abraços do CC.

Anônimo disse...

Texto de tirar o fõlego, e de muitas cores. abraços e felicidade sempre.

Anônimo disse...

eu tenho saudade de outros Dezembros...os dezembros nunca mais vão ser iguais...este texto está de matar! mas a gente tá vivo né... disse outro dia e digo de novo...eu quero nascer...to cansada de esperar que nasçam por mim...
e se isso vai ter que ser num janeiro... que seja no próximo.
um beijo especial...pq este texto assim o é.

Anônimo disse...

Viste como vieram comentar? (riso)

Compartilho de teu sentimento e agradeço por vomitares também por mim.

Menina Marota disse...

Para mim, não existem meses diferentes ou especiais. Para mim o calendário é o meu próprio coração, aquilo que sou, aquilo que desejo acima de tudo para os outros...
Para mim Dezembro, pode ser Outubro ou Janeiro, não sou diferente, nem procedo diferente...
Gostei de ler-te. Gostei dos sentimentos à flor da pele...

Um abraço ;)

Graça disse...

Obrigada pela visita e pelas palavras e, já agora, deixa-me dizer-te que dilacerante é não conseguir escrever assim, ou não conseguir escrever.
Parabéns pelos blogs - é difícil eleger o melhor...
Até breve.

Amélia disse...

nem sabe como me revi neste seu texto anti-natalício ou natal+icio para tantos de nós que detestam a ficção dos afectos em datas programadas...

Anônimo disse...

Um amigo comum abriu-me o caminho....estou num turbilhão de sentimentos. Obrigada por dizer por mim, tudo aquilo que penso sobre a hipocrisia dos vários dezembros.
Beijos
Teresa

Mónica disse...

escárnio... é comigo!
dezembro penoso, dezembro frio, dezembro fodido!
pra ti um bom janeiro!