SILÊNCIO DOIS
Algumas vezes, antes de beijar a mim e ao meu irmão na testa e dizer “boa-noite, durmam com Deus”, mamãe era visitada por outros silêncios. Silêncios que não lhe pertenciam, mas que chegavam mesmo assim. Curtos, como se indevidos. Vorazes, como se malvados. Tinham o rosto pálido e olhos isentos de cor, dedos magros e alongados.ao aproximarem-se de nós, abriam a própria boca para mostrar que por dentro de si não havia nada – fugia-lhes até mesmo o vazio. Eu podia sentir uma agonia desesperadora a invadir a alma da nossa mãe, que lutava querendo a todo custo levá-los embora dali e desta maneira, nos proteger. Mas eles ficavam, sabiam-na doente e que em breve não mais resistiria. Assim, munidos pela coragem perversa dos que espalham sofreguidão aos quatro ventos, percorriam lentamente os cômodos da casa, passando-nos os sonhos em revista, sorrindo seus dentes estragados a anteverem o sabor da tristeza. Outros eram aqueles silêncios, a nos roubarem a mamãe, dia após dia, por dois longos anos, comprimindo a esperança e trancando as sobras da vida em gavetas despovoadas de sol, de felicidade e de amanhãs.