DEZEMBRO EM CINCO PEQUENAS VARIAÇÕES
I RENASCER
acordei esquecido, hoje é um daqueles dias do décimo segundo mês nos quais o que menos interessa é a ordem correta dos talheres ou o ar quente que o ventilador devolve no meu rosto inexpressivo de homem inexpressivo e absolutista que não se permite chorar e que goza gozos invertidos na palma da mão direita. basta uma olhadela pra constatar que lá fora as pessoas exibem orgulhosamente o repertório de dezembro – felicitações, paz, saúde, harmonia e sorrisos. muitos sorrisos. sorrisos por todos os lugares até mesmo nas crianças escondidas nas calçadas mortas de fome de medo de indiferença de desamor e de razão [a razão nos mata a todos, mais cedo ou mais tarde]
II BLASFÊMIA
as pessoas são amáveis e gentis umas com as outras quando chega dezembro. quando dezembro chega as pessoas realmente são boas umas com as outras – essa bondade cristã que coloca as mãos em nosso pescoço e diz seja feliz assim mesmo. essa felicidade imposta. essa bondade tingida de branco que repete a mesma estúpida canção a manter-nos a infância em estado vegetativo - ela não levantará desse leito, vocês não conseguem ver? maldita seja a bondade dessas pessoas boas e asquerosamente bem-nutridas. maldita seja a bondade que persiste na mentira de que tudo é possível de que tudo é tão bonito de que somos todos irmãos e que somos todos filhos de um deus amável onipresente onisciente onipotente deus da benevolência e do perdão – esse deus não acredita em mim esse deus não acredita em ti esse deus não acredita em nós esse deus se diverte enquanto dormimos enquanto nos fudemos de todo enquanto mendigamos por amor enquanto apodrecemos nos leitos das nossas mortes ainda vivas e inválidas.
III ESCÁRNIO
acordei esquecido e pouco importa todos os passos que dei todas as frases que pintei todas as amarguras que digeri e todos os anjos que vomitei [no céu da minha demência os anjos ainda sabem sorrir, meus anjos retirantes que desenham chuva] hoje é mais um daqueles dias intermináveis dum dezembro que sempre sempre sempre é o mesmo dezembro [um dezembro embrulhado pra presente e que faz da gente um sopro um suspiro um risco de giz num quadro negro numa sala de aula que só ensina rancor perdas e fingimento]
IV ALMA
felicidade! desgraça de felicidade natalina feita de isopor e de tinta fresca prestes a ser manchada. dezembro é um mês mentiroso feito da mentira mais açucarada, feito da mentira que borrifa litros e litros duma fraternidade esclerosada mantida viva às custas de esmolas e esperança. dezembro é um mês feito de cinzas – as bocas que devoram dezembro são banguelas, os cus que defecam dezembro são desalmados, os olhos que refletem dezembro são opacos, as mãos que velam dezembro são trêmulas e vivem suadas. dezembro é só mais um mês de trinta e um dias. não há escape da solidão não há acalento nem porcaria alguma. dezembro! dezembro! dezembro! dezembro! maldito seja todo dezembro porque minha mãe não está mais aqui e minha tia e meu avô e minha avó também e meus brinquedos também e as estrelas-cadentes e os vaga-lumes e os abraços que eram de verdade e a neve que era de mentira e a paz que me fazia dormir tudo isso nunca mais, nunca mais, nunca mais estará aqui [eu tenho fotos, fotos dos que amo, algumas fotos, mas fotos são arremedos, fotos são instantes perdidos que ficam na gente só pra aumentar aquilo que nos corrói]
V COMUNHÃO
trinta e um dias inscritos nos músculos. trinta e um dias e mais alguns segundos quem sabe minutos pra que tudo recomece. trinta e um dias – dias que continuarão aqui quando tudo tiver partido, quando eu tiver partido e as cidades continuarem iluminadas e as pessoas, outras pessoas, prosseguirem na crença de serem felizes de fato. dezembro é um mês curto quando amanhece e infinito quando chega a noite. dezembro é um mês que nos suga a alma e escarra a carne. dezembro é um mês torto, um mês enrugado. dezembro é um mês sem cor em meio a tantas cores. dezembro é um mês cirúrgico [o corte preciso a expor toda a dor que precisa ser anestesiada] dezembro é um mês que nos oferece dádivas sem querer nada em troca. dezembro é um mês hipócrita. dezembro é um mês feliz e triste, diferente, bem diferente da felicidade e da tristeza dos demais.