segunda-feira, outubro 20, 2008

"prelúdio ao homem de palha". (não-livro) tomo I


mutus

sei do abandono a quietude. meus sonhos vêm de lá. a demência que me anima é atroz. despedaça a esperança. emaranha o horizonte. e escapa. escorraçado fui dessa cidade de mil nomes ao cair da oitava noite, enquanto o outono lentamente jazia trancado em sombras. reunidos, aqueles homens eram coisa, amontoado de corpos volumosos e sujos a voltarem ódio contra mim. abjetos, por que esconderam o rosto quando passei? por que sussurraram às minhas costas? por que oraram em desespero àquele deus benevolente, risível farsa por eles inventada? por que roubaram meu excesso, ataram meu grito, serviram-se do meu saber, reviraram minhas memórias? achavam que assim mudariam o que lhes escrevi como destino? digo-vos então, homens acobertados pela fé, existirem verdades que chegam pouco antes de o arrebol, trazendo em si as vicissitudes da noite. espirais, alimentam a penúria dos injustos, esvaziando de estrelas o céu. opacas, desconhecem o orvalho e daninham o vindouro. quando mortas, descerram temores. pertencem a lugar nenhum. vide, a solidão peregrina alcançou o luar. eis que se completa a noite. sob o canto da rasga-mortalha, violado pelo jugo ferrenho do olhar de cada um de vós, em desatino sentencio: aqueles que hoje me tripudiaram, amanhã decerto temerão.

segunda-feira, outubro 06, 2008

"prelúdio ao homem de palha". (não-livro) tomo I


amentia

sou meu próprio sumo. nasci de minhas entranhas, antes da luz e do verbo. na palma das mãos cicatrizei o fim de cada estação, ritual amortalhado ao qual chamei destino. desnudo o tempo, apenas a solidão do meu grito me habitava. nem sonhos ou preces, estrelas cadentes ou cantigas, nada, nada havia ao meu redor. por isso fui sementeira e da terra úmida fiz brotar os filhos que hoje renegam minha imagem. por eles criei-me enfermo de toda verdade. por eles aglutinei-me ao silêncio, larva que me infesta a razão. e quis meus olhos avessos à luz. e quis-me refúgio de loucos e pedintes. mas essa multidão nascida de mim, essa horda de homens cambaleantes e vis, zombou, descreu, enlameou o meu nome. porque fracos, porque vãos, porque erros, um após o outro, ruirão. e ao caírem de joelhos, terá chegado a minha hora. sou a única morada, o verdadeiro caminho. a redenção.