sexta-feira, fevereiro 24, 2006



FRAGMENTOS DE BREVIDADE E SILÊNCIO
FRAGMENTO UM
A RETIDÃO DA SAUDADE SILENTE
Soltei um grito abafado
incapaz de interromper a velocidade
das cores que cresciam por dentro
espalhando incoerência nua
sobre a minha pele
- o peso das derrotas; o torpor do esquecimento -

Quando você te levou daqui
anjos desabrigados
e manjedouras abandonadas
passaram a velar o vazio da ausência
alargando os limites corroídos da dor
- essa dor que não ecoa; essa dor limpa demais -

*

FRAGMENTO DOIS
UM RABISCO EM NANQUIM ACORDA AS ESTAÇÕES
Na primavera do cansaço
todas as janelas e portas
encerravam o ato enfadonho
de estar contido em mim mesmo
e esquecer as fronteiras do adeus
– minha própria queda; meu abismo sendo alimentado –

No inverno da dormência
eram frestas e rachaduras
a murmurar brincadeiras entristecidas
emolduradas pelo medo
de estar caduco de mim mesmo
- minhas feridas cauterizadas; meus lampejos fossilizados -

*
FRAGMENTO TRÊS
RUPTURA ESCALONADA
- BREVIÁRIO DO POETA INSONE -
Eu
jurei diante de deus.
jurei com fé
jurei de joelhos
jurei em vão

Eu
escrevi teu nome
com meu próprio sangue
escrevi teu nome
soletrando meu destino.

Eu
provei da felicidade
invadi-me da paixão
acovardei-me do amor
e sepultei-me do amanhã.

*
FRAGMENTO QUATRO
EPÍLOGO EM DOIS TEMPOS
TEMPO QUE CHEGA
Sou insone
Logo mais vem a noite
E ao meu triste olhar
Caberá das auroras
Amputar girassóis

Sou insone
E voltaram as cores
As mesmas cores
Que não sabiam sorrir
Que não sabiam da chuva
E que cresciam por dentro.

*
TEMPO QUE FOGE
O amor
quando visto por dentro
é tão somente
uma tolice fantasiosa
uma conjunção pegajosa
uma estória banal e mal contada
uma promessa infundada
um único suspiro
que nos encanta
e nos faz crer
pra depois
partir.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006



Tanto houve mãe, naquilo que nos restou.
Somos pedaços de sombras perenes
[desertas, frias e mudas]
Tanto houve mãe, naquilo que se passou.
As páginas do livro foram lidas ao contrário
[amargura, dor e cansaço]
Tanto houve mãe, naquilo que em mim não calou.
Saudade-sorriso no coração do menino
[quieto, sozinho e poeta]

domingo, fevereiro 12, 2006



CANÇÃO EM TRÊS LAMENTOS

LAMENTO PRIMEIRO
- AQUILO QUE VEM COM AS MANHÃS -

Um grito engolido
pausadamente
faz da tua carne
escritura-sepulcro
[anúncio das manhãs trajadas de cinzas]

Abertas dentro dos olhos
há janelas sem alma
sem vista e
sem ar
[lampejo de insone azul-deserto]

Aos ossos coube
o peso de seguir vivo
na feitura
do homem-rascunho.
[escapa à alma a ternura diminuta do roxo-poente]

Aos músculos coube
sustentar a lucidez
no limiar
do homem-farrapo
[fica na alma a quietude incômoda do branco-abandono]


*


LAMENTO SEGUNDO
- AQUILO QUE PARTE COM A CHUVA -

Um sorriso sedimentado e
um punhado
de moedas
são-te fronteiriças
[o humor do teu deus é raquítico,
recusa a fartura do riso e da dor]

A esperança mastigou teus medos e
na tua face
escarrou
anjos desbotados.

A esperança maquina felicidade e
secreta
imaculados
fluidos pegajosos.


*

LAMENTO TERCEIRO
- AQUILO QUE NOS PERPETUA -

Espantalho,
ainda ontem
te vi sentado sobre a grama
enquanto chuviscava
- teus dedos em vão tentavam te devolver às auroras -

Mas murcharam os girassóis e
já não há mais música
embalando o eu-menino
preso ao tempo
que não te leva embora
deste carrossel,
entristecido
a
girar.

Espantalho,
já é noite lá fora
escuta os bichos da mata
e os abraços do rio
que nina o sonho ribeirinho
[é hora de adormecer e recobrar os teus cânticos e a tua fé]

Espantalho,
descansa teus girassóis
tuas cantigas e teus ruídos
pois o frio-poesia saberá te despertar
quando a dor tiver passado e
a angústia alcançado
as trilhas do fim.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006



O grito engolido pausadamente em frente ao espelho – a delimitação do espaço; o remoer do enredo; a estética do vazio. A carne, embrutecida por anos e anos de mudez e retidão, já não é capaz de responder às tuas súplicas e tu bem sabes que orar é ineficaz nestas horas.

[lembras da tua mãe e das intermináveis dores de cabeça que a assolaram até a morte;
lembras dos sorrisos que ficaram pra trás,
distantes do toque da memória;
lembras que a vida se prometia eterna
quando as estrelas cadentes brincavam de sonhar
nas tuas noites de menino]


Teus olhos vagueiam sem olhar ao que fica e ao que vai – é a vitória do nada.
Tens mãos ressequidas e desprovidas de horizonte – é o júbilo da expiação.



Está tudo aqui, nesta madrugada encharcada e úmida – teus soldados de chumbo; tua colcha de retalhos; teu chapéu azul. Existe a tela d'um monitor crivando o que escapar à dor, tua frágil e irrisória sensação de alívio. O gosto amargo da alma desossada é aquilo que a solidão te reserva quando a esperança vomita lucidez nos teus orifícios. A lucidez a te invadir. A lucidez acreditando em ti.

[lembras dos rostos repentinamente vazios que passaram a te habitar a
ossada;
lembras do aviãozinho de papel que ganhou o azul do céu,
pra inalcançável não mais voltar
lembras que a primavera tinha o rosto de deus
quando o sol em segredo te disse
que toda dor iria passar]


Existem rumores de que você sonhará cata-ventos – é a ressurreição do espantalho.
Existem cochichos de que você trará os girassóis de volta – é a sagração da infância.



Homem feito de sobras,
as paredes do campanário
devoram o medo
e mortificam os passos errantes
da purificação

- é preciso limá-las
as paredes
lenta
e
pacientemente
para enfim
ser possível
alcançar
o lado de lá -